EM ALGUM LUGAR DO PASSADO

EM ALGUM LUGAR DO PASSADO
Celia, 49 anos de felicidade. Não sei viver sem ela

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

A Maria fumaça e o Vale do Rio Doce, doces lembranças.


A Maria fumaça e o Vale do Rio Doce, doces lembranças.

                    Viajar de trem sempre foi uma das minhas escolhas pessoais, era como se o mundo mudasse de rumo e eu seguia em uma direção escolhida por ele. Hoje não posso mais fazer isso, mas um dia se puder, quero de novo embarcar para uma viagem que pode até ser sem volta. Não vai importar. Minha alegria irá superar tudo, pois estarei fazendo a viagem que sempre fiz e nunca esqueci. É um privilégio uma viagem de trem. São tantas coisas que dificilmente poderíamos descrever todas. Quem viaja se diverte, sonha, vê um mundo diferente. A Maria Fumaça sempre foi um dos meus amores quando jovem. Margeando um rio, com seus apitos estridentes, uma parada em uma pequena estação, alguns saltam outros sobem. O cheiro do trem ninguém esquece. As fagulhas lançadas no ar, as paradas nas caixas d’água para matar a sede da locomotiva. E os guarda-pós? Usei muitos. Não sei por que, todos brancos.

          Muitas vezes alguns funcionários da ferrovia passam despercebidos. A gente na poltrona sonhando não sabe quantos estão trabalhando para que o trem siga seu destino. Ver a estratégia do manobreiro, simplicidade do guarda-chaves alterando o percurso do trem, da destreza do maquinista, do esforço do foguista alimentando a fornalha sempre faminta, do trabalho do pessoal da soca, a fazer os reparos necessários e o do fiscal de linha garantindo a segurança da viagem. É um espetáculo A parte. A locomotiva devagar ou correndo, durante o dia apitando, um som maravilhoso que devia encantar o maquinista que gostava de puxar o cordão do apito. As paradas nas estações, a aglomeração dos que chegavam e os que partiam. Os meninos com suas “coisas” vendendo e gritando – Olha o sanduiche de galinha, olha a manga madura! Doce de leite e doce de abobora quem quer? O apito do chefe do trem, ele devagar saindo da estação, a meninada correndo.

                   À noite, as luzes dos carros de passageiros acesas, a segunda classe, a primeira classe. Um espetáculo ver o condutor do trem, com seus bigodes imensos, seu uniforme impecável, e seu boné bem colocado na cabeça, começando seu périplo em todos os vagões. Uma rotina de anos, seu inconfundível apito para anunciar a partida do trem, e agora ali depois de percorrer os vagões da frente pedia educadamente – Bilhetes! Bilhetes! E todos sorridentes, com ele a mão para ver como ele picotava e perfurava numa manobra de deixar todos os passageiros embasbacados. Eu tinha conhecido todos os tipos de trem. Para mim as que mais gostava era da “Jibóia” enorme, gigante, com varias rodas. As “baldwins” me chamavam a atenção, por ser uma Maria fumaça pequenina. Tão pequena que sua chaminé abarcava todo seu todo.

                 Com era gostoso ficar ali na janela, vendo o trem cortando montanhas, apitando, soltando fumaça, mostrando que ali em seu caminho é ele quem manda. Quem teve o privilégio de viajar em uma Maria fumaça, de primeira ou segunda classe, não esquece nunca. Vai sempre margeando um rio, caudaloso ou não, ali vai ela, seguindo o seu curso natural. Seu destino uma próxima cidade, uma arraial, um sitio, um parada no meio do caminho. O barulho e o cheiro do trem é uma experiência muito viva. Sinto saudades da Maria-fumaça. Da volta da ferradura. Do guarda-pó para nos proteger das fagulhas lançadas pela locomotiva enfurecida. Das paradas na caixa d’água para matar a sede insaciável da Maria-fumaça. Do som inconfundível do apito do condutor que anunciava a partida do trem e depois percorria os vagões de passageiros para perfurar e vender os bilhetes. Do malabarismo dos guarda-freios puxando a corda e pulando de um vagão para o outro com o trem em movimento.

               Uma vez amigo de um foguista, ele me convidou para uma viagem de uma estação a outra. Trecho pequeno, mas foi para mim uma tremenda felicidade. Ver o maquinista olhando a frente, seu apito inconfundível (ele olhava para mim e sorria). O esforço do meu amigo foguista alimentando a fornalha sempre faminta. Difícil imaginar quantos estavam envolvidos para que aquele trem percorresse seu caminho, sem perigos, e chamando a atenção de todos que moravam próximo a linha.

                  Depois, passaram-se os anos e a Maria Fumaças foram trocadas por locomotivas a Diesel. Mesmo assim, minhas viagens nunca deixaram de acontecer. Lembro que com minha família, sempre íamos para passar uns dias em Vitoria, e o trem percorrendo aqueles trechos maravilhosos, as paradas nas estações, a meninada de novo gritando e vendendo frutas, salgados, uma festa. O condutor sorrindo a dizer bem alto “Próxima estação, Aimorés!”. É uma saudade imensa. Foi uma época maravilhosa. O Rio Doce caudaloso, águas límpidas (hoje não é mais) Era também um espetáculo a parte a passagem de trem por outro em alta velocidade.

                 Hoje não tenho mais esta oportunidade de viagem. Anunciam aos quatro ventos um tal de trem bala. Acho que não vou viajar nele. Não vai me deixar ver o rio, as paisagens, a meninada com aquela algazarra na estação. Não será o trem dos meus sonhos. O que foi ficou no passado. Difícil enfrentar a modernidade. Não sei se gosto dela.

            Meus filhos e meus netos não terão oportunidade de viver o que vivi. Não tem mais Maria fumaça. Não tem mais meninos vendendo frutas e salgados. Acho que nem o condutor do trem com seu uniforme impecável e perfurar os bilhetes com maestria não mais existem. É melhor ficar só com as lembranças. Estas sim mostraram uma outro época e a de agora não é para mim. Quem sabe serão para os meus filhos e netos.


"Lá vai o trem com o menino
Lá vai à vida a rodar
Lá vai ciranda e destino
Cidade noite a girar
Lá vai o trem sem destino
P’ro dia novo encontrar
Correndo vai pela terra, vai pela serra, vai pelo ar
Cantando pela serra do luar
Correndo entre as estrelas a voar
No ar, no ar, no ar.” 
 (O trenzinho caipira: Heitor Villa Lobos)

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Coisas da vida.


Coisas da vida.

                            Cada dia que passa, mais nós vamos pensando no próximo que vai passar. Mas o amanhã é só previsível e o hoje já é uma realidade isto na medida em que o ponteiro do relógio avança e vamos esperando acontecer o que planejamos o que nem sempre dá certo. Complicado não? Eu também achei. Mas não mudei, talvez por achar que assim é o começo e o fim ainda não sei como será. Vejam se entendem com a historieta que conto abaixo. Quando casei, há muitos e muitos anos atrás, lá pelos idos de 1963, me lembrei de um fato interessante.

                          É bom os amigos saberem que não é como contam hoje os articulistas, os fazedores de historia e os artigos escritos de uma forma toda simpática, dentro de um principio de classe média, o que no meu caso não era real. Até a tal de lua de mel não existia. Ela era feita com dois dias de folga conseguidos a custo no trabalho. Não tinha jaqueta preta, não podia comprar os discos da jovem guarda (dinheiro curto), e nem freqüentar o Guarujá, descendo a serra de Santos. Mal tinha uma bicicleta de pneu balão, freqüentemente cheia com meus amigos. Um na garupa, um dirigindo e eu no quadro com uma perna em volta do guidon.
                     
                       Mas vamos lá, casei, foi um dia festivo, com muitos amigos presentes, minha sogra é quem financiou a festa realizada na residência dela. Ficamos ali conversando bebendo um pouco (nunca fui de muita bebida) esperando a noite passar. Iríamos voltar para minha cidade onde iríamos morar às cinco da manhã. A viagem seria de trem, no expresso da manhã. Quando casei, não tinha reserva financeira, não tinha casa própria e os móveis, uma cama, um guarda roupa, uma cristaleira comprei de um amigo que era marceneiro para pagar em 4 vezes. Claro que paguei. Com muito custo consegui um fogão a gás. Na época na cidade onde iria morar eles eram ainda “coisa de rico”. Geladeira? Muitos anos depois. Televisão? Risos. Quanto tempo demorou eu não me lembro.

                           Como o dinheiro estava curto, basta dizer que três dias antes, (do religioso) casamos no civil na minha cidade (minha esposa era menor de idade e sem o aval do pai desaparecido, não quiseram fazer o casamento. Assim fomos à cidade que morava, pois conhecíamos o juiz de paz) e fiz o pagamento assim:

- Meu padrinho, amigo do Juiz pegou 60 cruzeiros emprestado com ele, me emprestou e eu paguei ao mesmo Juiz o valor do casamento, ou seja, 60 cruzeiros. Entenderam? Olhem o Juiz também meu amigo ficou cismado, pois achava que conhecia algumas notas recebidas, mas deixa prá lá. Quando chegamos a minha cidade, (a viagem era curta, apenas duas horas de trem) conversei com um amigo dono de um taxi, para me levar a casa em que iríamos morar, e se ele podia receber no fim do mês. Incrível não? Vocês não viram nada ainda. Quando chegamos a casa (esta casa, também tem uma historia, mas fica para outra vez), lá encontramos alguns amigos a espera. Era sempre assim. Todos me queriam muito bem. Entramos (ainda não conhecia o costume de levar a mulher no colo para atravessar a porta e acho até que nem existia). Minha esposa fez cafezinhos, serviu e nada dos amigos irem embora, lá pelas duas da tarde, despediram e saíram. Olhei para ela, um sorrisinho maroto. E surpresa, bateram na porta. Mais quatro amigos que chegavam. Queriam conversar e parabenizar.

                     Eu cansado e a esposa também, tivemos que ser educados e durante duas horas ali permaneceram. Quando saíram já passava das sete da noite, logo chegou o pároco, alguns casais da igreja que me conheciam. Deus do céu! Ficaram até a meia noite.  Foram embora sorrindo. Que dia. Claro tinha muitos amigos, mas aquilo parecia coisa combinada. Já preparávamos para dormir e eis que surge outros amigos, cujo turno de trabalho terminava às onze horas da noite, também resolveram nos visitar! – tudo isto na noite de núpcias! Incrível não? Agüentei até duas da manhã e infelizmente fui mal educado, mandei embora o padre e os amigos. Na saída, estavam todos ali, na minha porta. Mais de vinte pessoas. Rindo batendo palmas, cantaram (alguém levou um violão). Lá pelas quatro da manhã acho que não agüentavam mais e foram para suas casas me deixando a sós com minha mulher. O cansaço era muito grande e sempre achamos que alguns deles estavam à espreita nas janelas e esperavam o ponto culminante que claro não aconteceu naquele dia.

                     Só mesmo a noite, quando voltei do trabalho pude descansar e ter com minha esposa a lua de mel que não conhecemos no primeiro dia. Sempre de olho na porta para ver se não aparecia ninguém.  É bom ter amigos. Eles fazem falta. Hoje tenho poucos. Muitos que não conheço através desta telinha do computador. Acho que eles me querem bem mesmo sem me conhecer pessoalmente. Não há solidão mais triste do que a do homem sem amizades. A falta de amigos faz com que o mundo pareça deserto.


Hoje lembro com saudade de todos eles. Foram tempos bons. Uma amizade sem interesse. Não sei onde andam, e se ainda estão vivos. Mas valeu tudo que passei junto a eles. Se pudesse voltar no tempo o faria sem pestanejar. Mas o tempo não é mais nada que uma lembrança que se foi.

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Um cafezinho, por favor!


Um cafezinho, por favor!

                   Há muitos e muitos anos, lá pelos idos de 1959 eu viajava de trem para a cidade de Dom Silvério interior de Minas Gerais. Época que a Estrada de Ferro Leopoldina cortava quase todo o Brasil. Era um promotor de vendas, ou melhor, um reles vendedor de livros. Uma serra montanhosa ligava uma cidade à outra. Em linha reta se fazia a pé em uma hora e meia, mas de trem era cinco horas. Paramos em uma estação. Não ia descer. Os meninos gritavam tentando vender seus pasteizinhos, pão com carne, churrasco, goiaba, manga e tantas guloseimas possível. Na janela vi uma morena de olhos verdes, cabelos negros ondulantes, linda demais. Ofereceu-me cafezinho em um copo de vidro. – Só um real moço! Caramba, era linda demais. Precisava vê-la de corpo inteiro. Desci do trem. Era mestre para subir com ele andando. Ela sorriu para mim. Pensei com meus botões: - Que corpinho lindo! Quinze? Dezesseis? Por aí. – tomei um café, depois outro, brincando disse – Te dou cinco reais por um beijo! – Ela fez beicinho. O trem ia saindo. Dei um breve beijinho no rosto dela e sai correndo. Peguei o trem e pensei que seria o beijo mais lindo que tinha dado. Fui sonhando até a próxima estação.


                    O trem apitou. Encostou-se à plataforma. A garotada gritando – Goiaba, banana manga! Pão com Carne, Pastelzinho, churrasco! Olhei pela janela e lá estava ela de novo. Como? Ela voava? – Cafezinho moço? Ou um beijinho? – Surgiu na janela um garoto forte, alto com uma garrucha na mão. – Beije aqui moço! É de graça! – Nossa Senhora! O que é isto? O trem foi saindo de mansinho. Um tiro ecoou e bateu no vidro da janela do outro lado. Um túnel e uma descida. Mãe de Deus! Salvei-me desta. Um velho ao meu lado explicou que era só atravessar uma garganta, menos de cinco minutos e passava de uma estação a outra. De trem um volta enorme. Aprendi. Nunca mais comprei um beijinho viajando. O pior é que nunca fiz isto! Foi a primeira e única vez em minha vida. Beijinhos? Risos, nunca mais...

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

As dificuldades são como a brisa, elas chegam se vão e deixam saudades.


As dificuldades são como a brisa, elas chegam se vão e deixam saudades.

         A cena marcou minha mente e nunca mais esqueci. Seria digna de um filme, mas não foi. Demitido, sem sonhos futuros, em um caminhão Ford antigo, eu Celia e o Jan meu primeiro filho ali na boléia, comendo um pão com mortadela, em uma estrada de terra indo para um futuro que não existia. Jan com um ano sorrindo, olhei para ele e pensei: - Você só vê sua imagem em um lago se a água estiver parada. O que significa? Foi preciso eu olhar para ele para imaginar que a vida não seria tão ruim como prometia. Mas vamos voltar no tempo para entender tudo. Só vivendo é que aprendemos que nada é para sempre, e nem sempre tudo não tem uma razão de ser.

       1965 peão de obra na Usiminas, quase quatro anos na luta em trabalho de turno, boca do forno, anotando, saltando e correndo para entregar em uma locomotiva um ferro gusa derretido na Aciaria e fui surpreendido com minha demissão. Até então achava que iria terminar meus últimos dias como Usineiro. Mas uma tal de Booz Allen Hamilton, uma empresa contratada para reestruturar o efetivo humano não perdoou 2.000 funcionários que tinham sonhos como eu. Era uma época onde não podíamos acreditar em amizades ou será que podíamos? A usina não demitia viva voz. Retirava o cartão da chapeira e você então tremia quando chegava ou ia sair. Chegou a minha hora! Todos sabiam que isto quando acontecia era para procurar o Departamento de Pessoal. Má notícia na certa. Cheguei ao ponto do trabalho, desci do caminhão lonado com mais de cem homens em cima, fui direto para bater o ponto. Em volta muitos vendo quem seriam os felizardos da noite. Quando viram que eu fora escolhido riram e fizeram piadinhas.


                    Levei um choque. Doeu e como doeu. Uma experiência amarga que não desejo a ninguém. Minha vez? O jeito era pegar o caminhão de volta com a turma que saia a meia noite. Celia iria levar um susto. Eu e ela já tínhamos pensando nesta possibilidade. Muitos já haviam sido demitidos, mas achei que eu não iria sair assim de uma hora para outra. Ninguém dos meus amigos de turno veio me consolar. Todos sabiam que o corte era “bravo”. Quem sabe no dia seguinte seria a vez deles. Voltei. Planos na viagem? Não tinha a mínima ideia. Cheguei a casa por volta de uma da manhã. Celia dormia. Tinha que contar para ela. Choramos juntos. Custamos a chegar até ali na Candagolândia. Um bairro da Usiminas. Casas de dois cômodos sem banheiro, telha de amianto, em volta mais quatro casas que usavam de um banheiro e lavatório ao ar livre. Para mim um castelo, pois antes morei em dois cômodos fechados de taboas, em um barracão de uma empreiteira que achamos estar abandonado.

                        Nunca reclamei, pois achava tudo normal. Dois anos de casado, um filho maravilhoso que nos fazia sorrir sempre. O salário pequeno, mas dava para sobreviver comprando na Cooperativa da Usina. O rio próximo me abastecia de peixes. Carne só duas ou três vezes por mês. Não tínhamos geladeira, nenhum eletrodoméstico, um fogão simples de quatro boca a gás comprado com sacrifício e uma poltrona simples azul com cinco prestações paga. Faltava ainda mais cinco. Esperei o dia amanhecer e na minha bicicleta fui até o Departamento de Pessoal. – Senhor, para que possamos pagar sua indenização tem de desocupar a casa. Por favor, devolva a identidade e o cartão de compras da cooperativa. – Mas sem ele como vamos comer? Não tive resposta. Ir para onde? Como tirar tudo da casa se não tinha para onde ir? No bolso menos de vinte reais de hoje. Fui até o centro de Ipatinga, liguei para minha mãe. Ela disse – Venha para cá. Tem um quartinho nos fundos. Você pode ficar lá.

                        Precisava de um caminhão para levar minhas bugigangas. Não tinha como pagar. Um amigo aqui e outro ali e ninguém tinha para me emprestar. Eu sabia que o medo de todos era eu ir e nunca voltar para pagar as contas devidas. – Seu Nonato, tenho cinco prestações pagas das poltronas. Faltam cinco. Ela está novinha. O senhor pode ver e confirmar. Tenho que devolver, mas não daria para pelo menos me devolver duas prestações? Eu perderia só três! – Nada feito. Ele sabia que podia ganhar mais na devolução. Foi comigo em casa buscar. Confiar? Nunca. E agora José o que fazer? Ninguém tinha para me emprestar. Meus amigos chefes Escoteiros desapareceram. Na prateleira arroz e feijão para cinco dias. Sentando na porta da minha casa triste e pesaroso não sabia o que fazer – Seu Osvaldo! Olhei, era o João Bunda. Apelido que todos gostavam de chamá-lo e ele não se incomodava. Era um simples manobrista de vagões na usina. Caladão, uma enorme cicatriz no rosto quem sabe feita por uma faca. Ele pouco falava. Morava perto da minha casa. Mulher e três filhos. Homem simples sem afetação.

                           Olhe, sei que está passando por poucas e boas, quero ajudar. Quanto precisa emprestado? – Olhei João Bunda com lágrimas nos olhos. Tinha ali um amigo que nunca pensei que fosse. Fiz uns cálculos ele saiu e voltou com a quantia pedida. – João, palavra de Escoteiro e perante a Deus que volto para receber minha indenização e pago com juros. – Nem pensar juros. Confio no senhor. Falar o que? No dia seguinte fui embora. Meus amigos Escoteiros ou não que achava do peito não apareceram. João Bunda me ajudou a carregar a mudança. Usiminas Belo Horizonte. João Bunda foi o único que visitei quando retornei para receber minha indenização. Divida paga. Não aceitou um tostão a mais. Hoje seria quem sabe viagem de 3 a 4 horas até Belo Horizonte. Naquela época estrada cheia de curva, sem asfalto, muita poeira, quase oito horas de viagem. Deu fome. Paramos num bar de estrada. Tinha mortadela. Comprei quatrocentas gramas. Oito pães. Quatro grapetes. Sorrisos na boléia, o fordeco comendo a estrada. E a história final? Sobrevivi. O mundo gira e eu girei com ele. Mas nunca mais esqueci aquela boléia, comendo pão com mortadela, Celia me olhando pensando qual seria nosso futuro, Jan sorrindo com a viagem. Sorrisos inocentes de uma criança que sabia que os pais velariam pelo seu futuro.  

    

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Um pouco da minha vida.


Saudades da minha terra!
Um pouco da minha vida.

Oh! Que saudades que tenho

Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!
Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras
À sombra das bananeiras,
Debaixo dos laranjais!

Casimiro de Abreu.

                    O tempo passa, e muitas coisas das nossas vidas vão sendo colocadas em uma parte do nosso cérebro, não esquecidas, mas para serem lembradas um dia. Eu sou um homem da terra. De muitas terras. De algumas cidades. Um dia destes li de Paulo Gondim, um poema, do seu lindo Ceará. “Minha terra tão querida, a quem sempre vou amar. Um dia eu deixei, mas voltarei, ao meu lindo Ceará”.

             Ninguém esquece sua terra natal. Sua cidade, seu estado, seus amigos, suas histórias tão queridas. Nasci na minha querida Minas Gerais. Oh! Minas Gerais! Quem te conhece não esquece jamais. Nasci em uma cidade perdida no longínquo norte do estado, pequena, sem nada para viver, quem sabe uma ou duas ruas calçadas, uma pracinha, mas eu? Morava a seis quadras mais longe. Casa de taipa, esburacada, rua sem calçamento, esgoto a céu aberto, doenças. Três irmãs foram para o céu ainda com menos de quatro anos. Eu quase fui.

            Dois anos que não lembro a não ser as histórias contadas por meus pais e irmãs. Sobraram duas delas e eu. Meu pai seleiro, família pobre, lá fomos nós para uma fazenda. Não me lembro de nada. Menos de um ano e de novo outra cidade do outro lado das Minas Gerais. Poucas lembranças. Mais três anos e de novo outra e outra até que com seis fincamos o pé por muitos anos em uma maior, bem ao lado do formoso Vale do Rio Doce. Rio Doce! Quantas saudades, quantas travessias, jangadas, comer ingá nas suas margens nas cheias, quantos peixes. Hoje soube que está como o Tietê. Dói-me fundo. Ali praticamente cresci. Fui lobinho, Escoteiro, viajando a pé, de bicicleta vivendo uma vida de aventuras sem pensar no amanhã. Voltei um dia em todas as pequerruchas cidades que vivi. Fiquei tempos na terra onde nasci. Passei ali menos de duas horas. Vi a casa onde comecei minha vida de homem terreno. Nas outras poucas lembranças de uma época que minha memória não arquivou. Não tinham mudado nada na visão dos meus pais. Nesta última foram treze anos, de alegria, felicidades até que um dia a mudança aconteceu.

           Meu pai doente, início da década de sessenta, diabete ainda desconhecida era melhor procurar médicos especialistas. Capital do Estado. Nova vida. Novo emprego. Usina Siderúrgica. Peão no inicio. Interessante. Nunca fomos ricos. Ouve fases, algumas remediados outras? Melhor nem comentar. Estudo? Terceiro ano de ginásio. Eu sou um Iletrado. Nunca fui Doutor. Aprendi muito na Escola da Vida. Não sei como fui convidado para ser o chefão Escoteiro do estado. Comissário Regional. Uma época de viagens. Cidades e mais cidades sendo engolidas pelo escotismo. Amigos e amigos novos sendo conquistados. Quantas histórias, quantas estradas de terra percorridas, quantas coisas ficaram para trás. Mas o tempo não para. Um dia alguém chegou para mim – Queres ser um Administrador de uma fazenda? Putz! Não pensei duas vezes. Celia ao meu lado. Sempre formidável minha linda Célia. Oito mil cabeças. Meu Deus! Que isso? Botas no pé, chapéu de couro, perneira, meu lindo gibão cravejado de brilhantes, um peitoril simples e lá estava eu vaquejando aqui e ali pelas largas e capoeiras da vida.

               Quantas aventuras. Viagens no Rio das Velhas, Sucuri de quinze metros, enfrentar a correnteza do São Francisco, enfrentar pistoleiros morrendo de medo. Pescarias, criação a parte, porcos, galinhas, tratores, um D-12 da Caterpillar, enorme me hipnotizava. Adora andar com ele prá e prá cá. Comprei uma vacada de um fazendeiro em Barra do Guaçuí, duzentas cabeças. 150 quilômetros de distância. Achei melhor trazer por terra. Para mostrar ao Diretor que eu era econômico. Pobre “bunda”. Seis dias ida e volta. A cavalo. Levando um gado fácil, mas trabalhoso. Cinco anos maravilhosos. Filhos crescendo. Precisavam de bons colégios. São Paulo. Meu destino final. Empregado. Luta constante. Osasco era minha morada, ou melhor, ainda é. A luta dizem que é renhida, difícil. Sempre ao olhar minha vida lembro-me do poema de Gonçalves Dias. - Juca-Pirama. “Sou bravo, sou forte, sou filho do norte”. Andei longes terras, lidei cruas guerras, vaguei pelas serras dos vis Aimorés...

               Ei, calma! Não sou bravo e nem forte. Mas o tempo vai passando. Os anos não perdoam. Não dá mais para trabalhar. Uma vil aposentadoria. Mas feliz. Muito feliz. Quatro filhos criados e casados. Oito netos, uma linda árvore genealógica dando prosseguimento as lides traçadas por milhares de anos no espaço. Rodei meio Brasil. Pisei em outras terras. Conheci outros rumos, outros destinos. Mudei demais. Não sei se fiz bem. Não vejo como traçar o meu destino de outra forma. Tenho dúvidas não arrependimento. Quem sabe nem todas as trilhas que escolhi deram em boas estradas. Um dia destes irei por aí. Sei aonde vou. Não posso levar mais minha barraca, minha mochila e meu chapéu de três bicos. Lá dizem tem lindos locais de acampamentos. Córregos dançantes de águas tão claras que dá para ver o passado e o futuro. Onde as florestas são verdes e as flores as mais lindas do universo.

               Sempre é bom lembrar o caminho. Sempre é bom ver o que se foi o que se fez. Nunca fui rico. Morei em casa de taipas. Morei em tantos lugares que de vez em quando perco a memoria onde estou. Meu carrinho está encostado. A vista já não é a mesma. As pernas obedecem reclamando. Obriga-me a forçar meus passos por aí. Melhor assim, pois sempre fiz isto em minha vida. Viajei meio mundo no lombo de uma bicicleta. Com meu Vulcabrás conquistei montes e vales desconhecidos. Adoro o que fiz. Adoro o que sou. Não tenho duvidas do que serei.

                 Eu gosto de São Paulo. Fiz dele minha morada por mais de 38 anos. Não sei se fiz aqui muito amigos. Os mais chegados já partiram para começarem tudo de novo com os novos tempos. Eu ainda não fui. Deus me reservou outro destino. Seja ele o que for estarei pronto a enfrentar. Mas sabem, não tenho medo, não tenho receios. O que tem de ser será. Não podemos fugir do nosso destino.

Uma vida eu vivi. 1947 ficou na memoria quando comecei. Os tempos são outros, minha vez chegou ao fim. Posso ter tido tudo e posso não ter tido nada. Hoje tirei o dia para lembrar. Hoje? Risos. Agora são todos os dias. Mas quer saber? Tenho orgulho do que fui, pois sempre guardei a Lei a Promessa e o Escotismo no meu coração. Lá é sua morada é para sempre!


quarta-feira, 17 de setembro de 2014

“Causos e Ocausos” Belos tempos.


“Causos e Ocausos”
Belos tempos.
                   
                        Todos nós temos passagens na vida que não esquecemos. Algumas boas, outras ótimas e as ruins são em maior número. Depois que tempo passou é que vemos que todas elas tiveram sua hora certa para acontecer. Dizer que faríamos de outra maneira eu não sei. Se foi feito assim era porque acreditava que nada mudaria em nosso destino. Temos escolhas que muitas vezes nos assalta a mente por saber que elas podem dar ou não dar certo. Aqui não se trata somente disto. Minha vida foi divertida. Claro, muitos momentos ruins. Mas eu soube aproveitar a cada minuto, a cada dia e nunca deixei de tentar fazer e continuar fazendo até ver se ia dar certo. Algumas passagens do passado que hoje lembro e dou risadas. No passado não dei gargalhadas. Mas depois eu digo a mim mesmo. Valeu! E se valeu!

                 Esta aconteceu na década de sessenta, trabalhava como Técnico Programador em uma Usina Siderúrgica. Área de laminação. Foi nomeado pela diretoria o responsável para resolver todos os problemas da CIPA. (Prevenção Interna de Acidentes no Trabalho). O numero de acidentes multiplicava a cada mês. Alguém deu ideia sobre como evitar acidentes na área de ajustagem. Os esmeris eram um perigo. Ele deu uma ideia para melhorar o trabalho da piãozada. Primeiro aumentar o tamanho dos óculos de proteção e a segunda ia levar uma analise mais demorada. Trabalhavam juntos mais de 200 homens simultaneamente em cada turno distribuídos em dez bancadas diferentes. Junto com um supervisor da Ajustagem subimos na passarela da Ponte Rolante, pois lá em cima a visão do galpão (mais de cem metros de comprimento) era muito boa para ver a sugestão que deram na CIPA. Não sei como, em vez de olhar o galpão olhei para trás e vi um espetáculo que mudou a usina em seu modo de viver. Nada mais nada menos que a Secretária (uma bela loira metida que só vendo) de um Diretor alemão, famoso pela sua seriedade, fazendo sexo oral com ele. Ele não dava um pio. Esqueceram a janela aberta. De pernas abertas em cima de sua escrivania, ela agachada acariciava beijava e fazia de tudo para satisfazê-lo. No final limpou o membro com uma toalhinha molhada. O Chefe da Ajustagem que estava ao meu lado bateu palmas. Eles correram para fechar a janela. Tarde demais. A Rádio Pião tomou conta. A usina em peso só comentou aquilo por meses e meses. A secretaria foi demitida. O Diretor voltou para a Alemanha! Risos.

              Ainda na década de sessenta. Porto de Tubarão. Vitória. Trabalhava em uma companhia que estava construindo a Usina de Peletização de minério de ferro da Vale do Rio Doce. Era uma espécie de Chefe de Transporte. Trabalhava em um galpão de madeira e minha mesa ficava ao lado de um janelão que dava para avistar o mar a menos de cem metros. Um privilegiado eu me sentia. Todos os dias trabalhando e recebendo o vento marinho no rosto. Um dia resolvi almoçar correndo e tomar um banho de mar. Comi as pressas. De calção de banho pulei na água. Era bom nadador. O mar para mim não tinha segredos. Nadei mar adentro uns cento e cinquenta metros. Ia retornar e ao meu lado uns quatro tubarões. Enormes. Deus do céu! Desta vez estou morto, pensei. Eram mansos, me acompanharam até a praia. Depois fiquei sabendo que naquela época do ano eles viviam ali na costa. Tive sorte. Os perigosos apareciam mais tarde. Vivendo e aprendendo.

              Década de sessenta novamente. Meu casamento. Uma epopeia. Celia minha esposa com dezesseis anos. Precisava do pai para autorizar. Pai sumiu. Custei a arrumar um juiz na cidadezinha que morava para fazer o casamento civil. Não tinha recebido o pagamento. Duro. Celia e a mãe vieram de trem. Pedi ao Carlos meu amigo se me emprestava oitenta reais. Valor para pagar o Juiz. Ele não tinha. Tomou emprestado do juiz, mas não disse para que. Deu-me o dinheiro. Depois de casado paguei ao Juiz. Ele olhou a notas. Risos. Acho que reconheceu, mas não entendeu nada!

              Norte de minas meio da década de setenta. Gerente em uma fazenda. Cria recria e engorda mais de 8.000 cabeças de gado. Queria mostrar que entendia. Bem de mato sim, mas de gado não. Comecei no cavalo. Trazeiro doía horrivelmente. Um ano depois ainda não tinha traquejo. Os vaqueiros diziam que precisa de calo na “bunda”. Risos. Anualmente vacinar o gado. Aftosa e etc. A junta não era fácil. Demorávamos mais de três meses para vacinar todos. Sentimos a falta no final do trabalho de umas cem cabeças. A maioria garrotes. Ariscos. Achamos trinta deles na larga grande. Região de Cerrado. Mata fechada. Cactos à vontade. Muitas árvores com espinho. Cipós à vontade. Meu cavalo avista um garrote. Apronta uma corrida atrás dele sem minha ordem. Estava de perneira e chapéu de couro. Não adiantou. Bati a cabeça em um galho de árvore. Cai no meio dos espinheiros. Um mês de molho. A vaqueirada rindo da peça. Celia demorou dois dias para tirar espinhos no meu corpo. Cavalo? Passei cinco meses sem montar...

             Ainda no Norte de Minas. Ainda na fazenda. Tínhamos dois tratores agrícolas pequenos que chamávamos de jeriquinho um e dois. Um tratorista chamado Antonio Branco estava fazendo uma roçada em um piquete enorme. Cabia mais de trezentas cabeças. Tínhamos uma boa roçadeira acoplada ao jeriquinho. Quando cheguei lá a cavalo era hora do tratorista almoçar. Resolvi dar uma roçada por minha conta. Eu entendia bem do trator e da roçadeira. No final do piquete um monte de árvores pequenas e lá fui eu para cortar e roçar. Maldita árvore. Tinha duas grandes casas de marimbondos. Antonio sabia, mas esqueceu de me avisar. Milhares de maribondos em cima de mim. Pulei do trator ainda ligado e em movimento. Corri feito um demônio para o Rio das Velhas distante uns cem metros. Pulei na água. Mordidas mil. Fiquei inchado. Fui parar no hospital de Pirapora. Mais trinta dias de molho. Sou mesmo um sujeito de sorte.

                São Paulo final da década de setenta. Gerente de Depósito de Materiais trabalhando na Vila Leopoldina. Três galpões enormes abarrotados de tubos de aço. Os pisos ficavam a mais de metro e meio de altura da rua. Começou a chover. Agua subindo. Subindo. Subindo. Quando vi que ia passar o piso mandei todos saírem com agua no pescoço até a rua onde a enchente não tinha chegado. Fui o último. Quando tirei a bota com biqueira de aço, pisei em um mandi ou bagre sei lá. Quem conhece sabe o veneno que o danado solta em sua barbatana dura em forma de espada. Meu Deus! Uma dor incrível. Mesmo assim abandonei minha sala e fui até a saída. Pisei em outro e mais outro. Mal deu para chegar à rua sem enchente. Não aguentava andar. Direto para o pronto socorro. Paradoxo. Trabalhar em São Paulo, pegar uma enchente de um córrego sujo, que ninguém nunca supôs ter peixe e ser envenenado por mandís. Valha-me Deus.


                Tem mais, muito mais, mas fica para outra. Inté como diz o mineiro. Risos.                   

sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Ai, o circo vem ai! Quem chora tem que rir de tanta palhaçada!


Conversa ao pé do fogo.
Ai, o circo vem ai! Quem chora tem que rir de tanta palhaçada!

O Circo Vem Aí

Ai, o circo vem aí,
Quem chora tem que rir,
Com tanta palhaçada,
Tem hindu que come fogo,
Faquir que come prego,
Mulher que engole espada. (bis)

Tá na hora,
Hora bota o palhaço pra fora. (bis)
Tem um leão,
Tem um elefante,
Tem um anão,
Que levanta o gigante.

              Uma infância que muitos viveram e hoje nem sei se os jovens ainda tem esta oportunidade que eu tive. A chegada do circo era uma apoteose. A cidade em peso não falava outra coisa. Podia ser o Circo Garcia, o Circo Tihany, Grand Circo Orlando Orfei, Circo Americano, e tantos outros. Não sei nas grandes cidades, mas nas pequenas era o espetáculo do dia. Eu não esqueço nunca. Um amigo Escoteiro vinha correndo gritando: - O circo chegou! O circo chegou! Pronto. Tudo se encerrava, agora é viver o circo. Correr para a praça da estação onde eles enfeitiçavam a cidade. Era bom demais ficar ali, sentado, boquiaberto e vendo o corre, corre da peãozada para levantar os mastros, subir a lona e montar as arquibancadas que todos chamavam de poleiro. Lá na frente cadeiras que eles diziam ser camarotes. Em um dia tudo pronto. Que lindo era. As luzes coloridas à noite piscando e a gente não saia dali. Lá pelas tantas dizia – Vou para casa, amanhã após as aulas eu volto. A gente não queria sair dali. A garotada em peso presa e sonhando. Quem um dia não sonhou em ser do circo? Em seguir o circo de cidades em cidades por este mundo de Deus?

               Era um castigo quando você sentado na carteira da classe, o Padre Pedro dando sua aula de matemática e lá fora o circo desfilando. – Padre! Deixa nois ir lá ver? Ele carrancudo olhava para você e dizia – Não é nois, é nós! Mas seu coração era bom demais. – Dez minutos! Quem se atrasar procure o Padre Nonato. Ele vai tentar entender porque vocês estavam fora da aula. A gente nem pensava e desatava a correr até o portão do Colégio. Poxa! Era bonito demais. Na frente à moça em cima do elefante. No carro o de som o dono do circo gritava seu espetáculo – “Hoje tem hoje tem, e os palhaços em frente repetiam”. – Tem sim senhor. Hoje tem hoje tem, tem marmelada? Tem sim senhor! Hoje tem Goiabada? Tem sim senhor! E o palhaço o que é? É ladrão de mulher! E lá iam eles desfilando o dono do circo gritando – Não percam hoje no Gran Circo Garcia, agora com três picadeiros, venham ver o maior espetáculo da terra! Venham ver o leão da montanha, venham ver a mulher barbada, venham ver o homem que engole espada, o faquir que come prego. Não percam Os maiores trapezistas do mundo!

                  Que sonho meu Deus! Eu não ia perder. Claro não podia pagar e tinha de passar por baixo da lona. Era experiente, sabia como fazer. Eu adorava os palhaços. Dizem que a alegria não está no circo, está no palhaço. Contaram-me que até o palhaço mais alegre do circo pode chorar em um dia de folga. Não me importava desde que me fizesse rir. – Mãe eu vou ao circo hoje à noite, vou chegar tarde. Ela ria e sabia que eu ia dar um jeito de passar por baixo da lona. Não tínhamos dinheiro para o ingresso. Na primeira tentativa o homem bigodudo me esperava lá dentro embaixo do poleiro. Pegava-me pela gola e bumm! Jogava-me lá fora. Mas eu não desistia e tentava de novo, sabia que em uma tentativa ia conseguir. E claro conseguia. Debaixo do poleiro, ou melhor, da arquibancada procurava um lugar para sentar. Agora era ver os trapezistas, o magico, o menino do elefante, o valente domador de leões, o homem que come fogo e o engolidor de espada. Eu mal respirava! Não perdia nada!

                 Era uma infância gostosa, inocente, onde até os vigias de circo fingiam não ver quando passávamos por baixo da lona. Acho que sua paga seria ouvir nossas risadas com os palhaços, com o macaquinho ladrão. Eita, meu Deus! Tempo bom demais. Hoje acho que o circo como era acabou. Agora é um tal circo de Solei, tudo como se fosse um cinema, é bonito mas não era como meu circo Thiany, um circo de mágicos que meus olhos esbugalhados não acreditava no que eles faziam. Alguém me disse que ao acabar com o circo nas pequenas cidades ou mesmo nas grandes cidades, deixaram a molecada sem diversão e ela correu para as drogas, para a marginalidade e outras coisas mais. Enfim, aqueles que como eu puderam assistir aos circos que correram o sertão sabe e guarda na memória os tempos felizes, onde a amizade, o sonho e a bondade tinha presença garantida.


               Tem volta? Volta no tempo? Não tem. Agora a meninada se diverte olhando um smartfhone, um celular dourado, músicas que não se entende, eles não tiram os olhos, não veem nada a sua volta, nem sabe que hoje tem lua cheia, que o vento vem do sul, que as estrelas brilham no céu. Nem mesmo conversam mais com seus pais, com seus irmãos, com seus amigos. Agora só o que tem ali naquela maquinha infernal prevalece. O circo? Este ficou na memória, mas valeu!   

terça-feira, 5 de agosto de 2014

Quando eu voltei a ser criança.


Quando eu voltei a ser criança.

              Uma máquina do tempo me levou ao passado. Que coisa boa. Nesta viagem os ETs apagaram da minha mente minha velhice e me fizeram sonhar de novo com os meus sete anos! Um sonho distante. Que lindo! Voltar de novo a ser criança e era como um cinema na minha frente e eu vendo...

              - Me vi acordando pela manhã, ouvi novamente os pardais no pé de manga no quintal da minha casa, que bom. Sabia que não ia à escola, pois era sábado, e ficaria ali a olhar para o teto e sorrir. Meus pensamentos eram tantos e nem sabia o que iria fazer hoje, lá fora pela janela o sol forte. E gostava do sol mais que da chuva. Lindo o sol brilhante. Me via colocando as mãos sobre a nuca pensando nos meus problemas. Muitos. Sabia que mamãe ia pedir para bombear água para a caixa logo cedo. Não tínhamos água da rua e uma cisterna resolvia. Ela sabia que quando saísse não tinha hora para voltar. Seriam cento e cinquenta bombadas. Nada menos que meia hora e lá ia eu após tomar café com bolo de aipim que minha fazia sempre. Eu adorava.

              - Me vi sentado na linha do trem, adorava colocar os ouvidos no trilho e ver se alguma locomotiva ia passar. Dava para ouvir o plac plac ao longe. Os outros meninos estavam jogando bolas de gude. Eu sempre tinha vinte ou trinta biroscas. Gostava de jogar. Três panelinhas, correr uma por uma, ganhar ou perder minha birosca. Mais meninos chegavam. Mais panelas eram feitas. Se tivesse chovido na véspera era a vez do finquinho. Entretanto hoje neste sábado não teria tempo. Mamãe conseguiu com a costureira dez carreteis de madeira. Tinha guardado uma lata de marmelada. Iria dar um belo carrinho para minha coleção.

              - Minha casa, depois da linha da estrada de ferro, tinha uma varandinha, nos fundos um quintal enorme. Vavá meu primo mais velho comprou uma mesa de ping pong.  Eu me virava jogando com minha irmã Cecéia. A mais velha. Bem próximo ao morro lá no fundão do quintal era minha cidade. Nela eu sempre fazia estradas, pontes, um posto de gasolina e algumas casinhas. Lá eu guardava minha frota de caminhões. Todos de lata com carreteis de linha. Difícil decisão. Minha mente tinha de resolver, não era fácil. Jogar birosca, fazer meu carrinho ou soltar meu papagaio que papai fez? Quantos problemas eu tinha. Afinal ele além de fazer um lindo papagaio fez também uma manivela enorme! Eu tinha prometido aos meus amigos de levar o papagaio aos céus, bem alto e se voltasse com pingos de nuvens seria uma alegria que iria durar para sempre! Eram poucos que conseguiam. Só a alegria de voar, sem destruir os dos outros!

             - Um sábado. Quantas coisas eu ia fazer. Mas a turminha da birosca insistia para eu participar. Já ia caminhando rumo a eles e passou um menino de azul. Quem era? Nunca o vi. Um boné e um lenço verde e amarelo no pescoço. Nos meus gibis já tinha visto os caubóis assim. Mas ele era diferente. Estava sorrindo. Orgulhoso de seu uniforme! Meu Deus! Que lindo menino. – Oi, você, quem você é? – Sou lobinho. – Lobinho? – Sim, dos escoteiros. - Minha nossa! Onde vocês ficam? Atrás do cinema Pio XII. – Mamãe! Vou lá perto do cinema, volto logo. Vou ver os escoteiros! – Não demore, o almoço está quase pronto.

             - Uma turma enorme. Mais de cem. Todos brincando. Que lindo! Sentei numa pedra próxima e fiquei ali o tempo todo vendo. Sabia que mamãe ia ficar “braba”, pois não queria sair dali. Meus olhinhos brilhavam. Meus lábios sorriam toda vez que davam um grito esquisito! - Um lobinho me chamou. – Quer participar? Falta um na minha matilha cinza. Um jogo difícil. Precisamos de mais um! – Que bonito foi. Esqueci tudo. Meus carrinhos de lata, minhas biroscas, meus finquinhos e até meu lido papagaio que ia voar nas nuvens. Agora estava nos lobinhos. Meu Deus! Que coisa maravilhosa!

            - Mamãe! Venha comigo. Tem de me matricular nos escoteiros! Ela riu e disse hoje não. Chorei. Chorei muito. Mas filho amanhã não pode? Não mamãe, tem de ser hoje. E lá foi ela de mãos dada comigo. Minha mãe. Minha linda mamãe. E o começo da jornada começou ali. Ela sempre me apoiou. Meu pai ria quando contava minhas histórias de lobinho. Grande papai. Senti alguém me puxando, era a máquina do tempo. Trouxe-me de volta ao meu mundo, a minha velhice, as minhas lembranças. Quando tempo, quantas coisas boas e quantas recordações. Um dia quero a máquina do tempo de volta. Ver novamente fatos marcados que ficaram para sempre na minha memória. Como foi bom voltar a ser criança, valeu. Nunca esqueci aquele menino de azul. Foi quem me trouxe a esta vida que sempre amei. Obrigado. Não sei mais quem é. Não lembro o seu nome. Onde estiver, obrigado mesmo

sábado, 12 de julho de 2014

Amigos, amigos negócios a parte. Só pela mão de Deus me senti salvo.


Amigos, amigos negócios a parte.
Só pela mão de Deus me senti salvo.

        Difícil separar os amigos dos negócios. Sem perceber nós vamos nos envolvendo de tal maneira que quando precisamos dar um basta ou um passo atrás se torna impossível. Sempre me disseram que os que sobem na vida, dão certo em suas profissões ou mesmo nas suas realizações souberam separar os amigos para não misturar-se aos negócios. Mas hoje me lembrei que me meti em uma aventura que quase perdi a vida. A vida? Isto mesmo. Escapei por pouco. Aconteceu a muitos e muitos anos. Lá por volta do final da década de cinquenta. Poucos anos, procurando empregado, difícil de encontrar. Todos os dias vestindo um terno surrado, comprando o Estado de Minas, varrendo as ofertas, andando a pé, pois o dinheiro era curto para ônibus e eis que me tornei um vendedor. Isto mesmo. Vendedor de Livros. Os chefões me disseram que eu iria vender as maiores enciclopédias do mundo. A Delta Larousse e Barsa. Havia outras, mas não tão famosas.

          Uma semana de treinamento. Mais de vinte interessados. Para dizer a verdade eu nunca me considerei bom vendedor. Minha “lábia” era desacreditada. Minha apresentação não era lá estas coisas. E meu terno coitado, surrado de anos de uso. Só tinha um. Mas lá fui eu com a cara e coragem de quem precisa trabalhar e sustentar uma família. Rodamos varias cidades de Minas Gerais. Dom Silvério, Barra Longa e Ponte Nova. Duas semanas e eu não vendi nada. Os outros vendiam a rodo e eu não. Éramos quatro tendo dois mais antigos nas andanças com os livros embaixo do braço. Marinho (nome fictício) era o responsável. Vendedor emérito, bom de bico, me lembrava John Travolta em os Embalos de sábado à noite. O cara era bom mesmo. Sempre em cada cidade dez ou quinze enciclopédias britânicas. Não era barato. Íamos em sua Rural Willis zero quilometro. Linda. Ele contando seus casos. Gente boa e falante.

             A coisa complicou em uma cidade ferroviária, entroncamento entre a Central do Brasil e a Vale do Rio Doce. A chegada era a mesma. Ele percorria com sua Rural as ruas da cidade e bom para memorizar dizia – Você fica com esta e esta e você... Assim distribuído íamos procurar uma pensão para alojarmos. Eu gostava das pensões, sempre uma senhora simpática, uma cozinheira de primeira e eu sempre sem nenhum tostão. No primeiro dia bati de porta em porta. Afinal ali moravam só ferroviários e eles tinham fama de ganhar bem. Primeiro dia, necas. Segundo dia uma senhora se interessou. Disse que ia falar com o marido. Animei-me. Quem sabe ali seria minha primeira venda? Sai de sua casa sorrindo e como era tarde voltei para a pensão. Um banho, uma bermuda, um jantar supimpa e quem sabe uma pracinha para ver as mocinhas do lugar.

            Estávamos os quatro na mesa jantando. Marinho como sempre falando e falando. Desta vez contando que entrou uma casa, uma linda senhorinha de baby dool e ele não perdeu tempo. Como dizia sempre – Papei gostoso! E ria. Nem sei o que elas viam nele, apesar do seu estilo Travoltiano e sua conversa fiada ele “papava” mesmo a mulherada. Estava quase terminando quando vi em minha frente um senhor alto, de bigode espesso, carregando uma espingarda enorme. Ao lado dele outro com um revolver na mão. Um deles gritou quem era o Marinho. Ninguém falou nada. Um silêncio sepulcral na mesa. Olhei para o Marinho e ele levantou sorrindo e dando o requebrado do Travolta. Acho que ele copiou do filme. – Quem quer falar com o Marinho? Gritou baixinho como se fosse um chefão armado até os dentes.

            - É você? Seu filho da puta! Fale, é você? Marinho viu que a coisa estava preta, chutou a cadeira e saiu correndo pulando pela janela. – O do Revolver gritou – Mate todos, não deixa escapar nenhum! – Cacete! A coisa ficou feia, vi alguém dando um tiro e nem sei como pulei a janela com uma saraiva de balas atrás de mim. Corri mais que veado da onça. Entrei logo em um matagal que era mais capim colonião e me cortava todo. Abaixei-me e fiquei ali sem respirar. Eles passavam perto e um aperto no coração dizia que eu ia desta para melhor. Não podia morrer morrer por quê? Não fiz nada! Pensei. Quando se acalmou um pouco voltei no escuro até a pensão. Entrei no meu quarto peguei minha mala e sumi dali. Andei a pé a noite toda e pela madrugada cheguei em outra estação. Esperei o trem e voltei para minha cidade. Escapei por pouco.

            E o que tinha acontecido com os demais? Dois dias depois fui na empresa saber e pedir minhas contas. Contas? Não tinha nada para receber. Ainda bem que não me cobraram nada. Fiquei sabendo que Martinho e os demais escaparam ilesos. Ele deixou lá sua Rural zero e alguém da firma foi buscar depois. Pagou a pensão e trouxe todas as malas dos demais. – E dai? Perguntei. Porque o cara queria matar a gente? – Marinho Osvaldo, ele “papou” uma jovem recém-casada. Ela não podia ter filhos, pois tinha o útero de criança. Ia ser operada. O danado nem se deu por arrependimento. Entrava e saia da casa da mocinha como se fosse seu bordel particular. Seu marido era um respeitado engenheiro da estrada de ferro. Vocês escaparam por pouco. Pois é. Achei que dai em diante minha vida de cacheiro viajante tinha acabado. Vender? Nunca vendi nada. Hoje me lembro que eles não eram tão amigos assim. Ninguém me procurou depois para saber o que aconteceu comigo.


               Como dizem por aí - Amigos amigos, negócios a parte. Mas cá prá nós, era um negocio e dizer que tínhamos amizade era um tremendo de um papo furado. Escapei por pouco e nunca mais voltei àquela cidade.  

sexta-feira, 6 de junho de 2014

Ele era o meu pai


Ele era o meu pai

Não tivemos um relacionamento muito próximo. Talvez pela época, onde o respeito e a palavra senhor fazia parte do nosso vocabulário. Pequenos momentos talvez. Ele me contou diversos fatos de sua vida. Não muitos porque se fosse hoje eu queria saber muito mais. Não foi um pai diferente dos outros e nem tampouco excepcional. Mas para mim foi aquele que admirei e admiro até hoje. 

Quando pequeno, não sabia o que se passava não me preocupava com o dia, a semana, o ano. Ia à escola e depois era só brincar. Na minha casa morava eu, minhas duas irmãs, minha mãe. Achava que éramos uma família feliz apesar de pobre. De uma pequena cidade só lembro-me de uma casinha branca, próximo ao cemitério. Por dentro não me lembro de nada. De outra cidade, lembro-me da casa, de madeira, fundos para o rio e embaixo em um porão com piso de terra, alguns pobres aproveitavam a seca do rio para ali morarem. Quando chovia o rio invadia tudo. Também éramos muito pobres, pois em volta de uma pequena mesa, sentávamos em caixotes para as refeições.

Graças a Deus que nunca passamos fome. Dificuldades sim. Elas existiam e eu pequeno não tomava conhecimento. O café da manhã, o almoço e o jantar sempre existiram. Meu pai nesta época era Seleiro, aquele que fazia selas para cavalos e outros apetrechos afins.  Eu pequeno, 06 para 07 anos não ajudava a não ser aos sábados e domingo. Nestes dias ajudava a engraxar os sapatos de vários clientes do meu pai. Tornei-me um excelente engraxate. Lembro-me do Grupo Escolar, do colégio, mas não me lembro de meu pai em momento algum me chamando a atenção ou brigando comigo. Era calmo e ponderado. Nunca em tempo algum me encostou a mão e por muito poucas vezes falou mais alto.

Sei que as manas e ele com muito sacrifício compraram um terreno e construíram um barracão em um bairro na periferia da cidade. Nele tinha o meu quarto próprio. Eu gostava de morar ali. Apesar de não ter ainda água encanada da rua, havia uma cisterna com uma bomba manual. Todos que tomavam banho teriam que usar a bomba por mais de 100 vezes. Assim, mantínhamos a caixa cheia e o serviço feito por todos. Meu pai alugou um salão próximo ao centro. Ali montou uma oficina de rádio. Tinha estudado por correspondência e já era um perito no assunto. Achava que meu pai era muito inteligente. Tentei fazer o mesmo curso, mas não deu certo. Talvez porque não era bom aluno ou quem sabe não era o que queria fazer. Após as aulas ia trabalhar com ele e ver se aprendia alguma coisa na prática.

Ele me deixava ficar com a quantia dos serviços que realizava. Muito poucos por sinal, mas dava para ir ao um cinema, acampar e namorar. Nesta época já trocávamos idéias e ele com sua sapiência me mostrava algumas diretrizes da vida. Conversamos pouco. Foi ali que alguns fatos de sua vida me foram relatados, com parcimônia é claro. Uma de quando moramos em uma fazenda de um tio meu, eu ainda com três para quatro anos, (não me lembro de nada a não ser da casa, pois posteriormente passei algumas férias lá) e o que ele fazia nunca soube.

Uma vez comentou comigo sobre a revolução de 32 (constitucionalista). Ele jovem ainda se alistou. No inicio tudo era festa para ele e seu amigo um tal de Sebastião Barrigada. Andaram por aqui, por ali, até que foram levados de caminhão a uma pequena cidade já dentro do território paulista. No primeiro confronto, foi só correria. Os paulistas inventaram uma matraca que imitava perfeitamente o pipocar de uma metralhadora ponto 30. Quando começou o barulho foi um Deus nos acuda. Depois virou rotina, ninguém mais tinha medo, pois já sabiam o que era. Estavam em uma tarde em uma trincheira, deitados e o matraquear das metralhadoras pipocavam ali e lá. Seu amigo ficou em pé e começou a chingar os paulistas e rindo dizendo que com a mineirada eles não eram de nada. Meu pai gritou para o Bastião deitar. Ele não obedeceu. Achava que era mais uma piada dos paulistas. Em dado momento o Bastião deitou de vez. Meu pai disse para ele, você deita ou não deita? E olhando viu que ele tinha um grande buraco na testa e do outro lado pedaços de seu miolo jaziam por todo o lado. Foi de estarrecer ele disse.

Não contou mais de sua luta, da sua militância política da revolução enfim de muitas outras coisas que eu gostaria de saber.  Sabia que ele gostava do partido da UDN e odiava o PSD. Porque não sei. O tempo passou. Ele ficou doente, quase morreu. Minhas irmãs o levaram para a capital. Lá achavam que ele teria melhores chances. Depois ficamos sabendo que era diabete. Pouco conhecida na época. Muitos anos depois, morando na mesma cidade, aos domingos me dirigia a casa dele, passava lá o dia inteiro, mas conversávamos pouco. Acho que não havia assuntos, mas quanta coisa poderia ter sabido se tivesse perguntado.

Sua vida foi sem sobressaltos. Doente, andava aqui e ali fazendo pequenas caminhadas. O que sentia não perguntei. Devia ter perguntado. Ele nada dizia. Morreu em uma semana qualquer há muitos e muitos anos. Fui ao enterro e chorei. Pensava no meu pai e o quanto poderíamos ter conversado. Hoje, espírita que sou acho que ele não deve ter tido dificuldades para alcançar um lugar melhor para ficar. Senti e sinto falta do meu pai. Hoje com quatro filhos e muitos netos, me pergunto por que não ficamos mais próximos. Ele era assim e eu também. Ainda sou meio taciturno com os meus filhos. Herança? Não sei. Quero me aproximar e não consigo. O mundo é assim. O livre arbítrio nos faz escolher caminhos que nem sempre são aqueles que deviam ser escolhidos. Faz parte do nosso crescimento.


Um dia vou me encontrar com ele. As perguntas que não fiz a farei. Se as respostas forem a que espero ótimo se não forem paciência. Este era o meu pai. Um homem calado, bondoso, amigo que me deixou fazer o que queria. Nunca em tempo algum me fez qualquer admoestação. Que ele seja feliz onde quer que esteja e que na sua próxima encarnação encontre de novo a felicidade que merece.