EM ALGUM LUGAR DO PASSADO

EM ALGUM LUGAR DO PASSADO
Celia, 49 anos de felicidade. Não sei viver sem ela

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

As dificuldades são como a brisa, elas chegam se vão e deixam saudades.


As dificuldades são como a brisa, elas chegam se vão e deixam saudades.

         A cena marcou minha mente e nunca mais esqueci. Seria digna de um filme, mas não foi. Demitido, sem sonhos futuros, em um caminhão Ford antigo, eu Celia e o Jan meu primeiro filho ali na boléia, comendo um pão com mortadela, em uma estrada de terra indo para um futuro que não existia. Jan com um ano sorrindo, olhei para ele e pensei: - Você só vê sua imagem em um lago se a água estiver parada. O que significa? Foi preciso eu olhar para ele para imaginar que a vida não seria tão ruim como prometia. Mas vamos voltar no tempo para entender tudo. Só vivendo é que aprendemos que nada é para sempre, e nem sempre tudo não tem uma razão de ser.

       1965 peão de obra na Usiminas, quase quatro anos na luta em trabalho de turno, boca do forno, anotando, saltando e correndo para entregar em uma locomotiva um ferro gusa derretido na Aciaria e fui surpreendido com minha demissão. Até então achava que iria terminar meus últimos dias como Usineiro. Mas uma tal de Booz Allen Hamilton, uma empresa contratada para reestruturar o efetivo humano não perdoou 2.000 funcionários que tinham sonhos como eu. Era uma época onde não podíamos acreditar em amizades ou será que podíamos? A usina não demitia viva voz. Retirava o cartão da chapeira e você então tremia quando chegava ou ia sair. Chegou a minha hora! Todos sabiam que isto quando acontecia era para procurar o Departamento de Pessoal. Má notícia na certa. Cheguei ao ponto do trabalho, desci do caminhão lonado com mais de cem homens em cima, fui direto para bater o ponto. Em volta muitos vendo quem seriam os felizardos da noite. Quando viram que eu fora escolhido riram e fizeram piadinhas.


                    Levei um choque. Doeu e como doeu. Uma experiência amarga que não desejo a ninguém. Minha vez? O jeito era pegar o caminhão de volta com a turma que saia a meia noite. Celia iria levar um susto. Eu e ela já tínhamos pensando nesta possibilidade. Muitos já haviam sido demitidos, mas achei que eu não iria sair assim de uma hora para outra. Ninguém dos meus amigos de turno veio me consolar. Todos sabiam que o corte era “bravo”. Quem sabe no dia seguinte seria a vez deles. Voltei. Planos na viagem? Não tinha a mínima ideia. Cheguei a casa por volta de uma da manhã. Celia dormia. Tinha que contar para ela. Choramos juntos. Custamos a chegar até ali na Candagolândia. Um bairro da Usiminas. Casas de dois cômodos sem banheiro, telha de amianto, em volta mais quatro casas que usavam de um banheiro e lavatório ao ar livre. Para mim um castelo, pois antes morei em dois cômodos fechados de taboas, em um barracão de uma empreiteira que achamos estar abandonado.

                        Nunca reclamei, pois achava tudo normal. Dois anos de casado, um filho maravilhoso que nos fazia sorrir sempre. O salário pequeno, mas dava para sobreviver comprando na Cooperativa da Usina. O rio próximo me abastecia de peixes. Carne só duas ou três vezes por mês. Não tínhamos geladeira, nenhum eletrodoméstico, um fogão simples de quatro boca a gás comprado com sacrifício e uma poltrona simples azul com cinco prestações paga. Faltava ainda mais cinco. Esperei o dia amanhecer e na minha bicicleta fui até o Departamento de Pessoal. – Senhor, para que possamos pagar sua indenização tem de desocupar a casa. Por favor, devolva a identidade e o cartão de compras da cooperativa. – Mas sem ele como vamos comer? Não tive resposta. Ir para onde? Como tirar tudo da casa se não tinha para onde ir? No bolso menos de vinte reais de hoje. Fui até o centro de Ipatinga, liguei para minha mãe. Ela disse – Venha para cá. Tem um quartinho nos fundos. Você pode ficar lá.

                        Precisava de um caminhão para levar minhas bugigangas. Não tinha como pagar. Um amigo aqui e outro ali e ninguém tinha para me emprestar. Eu sabia que o medo de todos era eu ir e nunca voltar para pagar as contas devidas. – Seu Nonato, tenho cinco prestações pagas das poltronas. Faltam cinco. Ela está novinha. O senhor pode ver e confirmar. Tenho que devolver, mas não daria para pelo menos me devolver duas prestações? Eu perderia só três! – Nada feito. Ele sabia que podia ganhar mais na devolução. Foi comigo em casa buscar. Confiar? Nunca. E agora José o que fazer? Ninguém tinha para me emprestar. Meus amigos chefes Escoteiros desapareceram. Na prateleira arroz e feijão para cinco dias. Sentando na porta da minha casa triste e pesaroso não sabia o que fazer – Seu Osvaldo! Olhei, era o João Bunda. Apelido que todos gostavam de chamá-lo e ele não se incomodava. Era um simples manobrista de vagões na usina. Caladão, uma enorme cicatriz no rosto quem sabe feita por uma faca. Ele pouco falava. Morava perto da minha casa. Mulher e três filhos. Homem simples sem afetação.

                           Olhe, sei que está passando por poucas e boas, quero ajudar. Quanto precisa emprestado? – Olhei João Bunda com lágrimas nos olhos. Tinha ali um amigo que nunca pensei que fosse. Fiz uns cálculos ele saiu e voltou com a quantia pedida. – João, palavra de Escoteiro e perante a Deus que volto para receber minha indenização e pago com juros. – Nem pensar juros. Confio no senhor. Falar o que? No dia seguinte fui embora. Meus amigos Escoteiros ou não que achava do peito não apareceram. João Bunda me ajudou a carregar a mudança. Usiminas Belo Horizonte. João Bunda foi o único que visitei quando retornei para receber minha indenização. Divida paga. Não aceitou um tostão a mais. Hoje seria quem sabe viagem de 3 a 4 horas até Belo Horizonte. Naquela época estrada cheia de curva, sem asfalto, muita poeira, quase oito horas de viagem. Deu fome. Paramos num bar de estrada. Tinha mortadela. Comprei quatrocentas gramas. Oito pães. Quatro grapetes. Sorrisos na boléia, o fordeco comendo a estrada. E a história final? Sobrevivi. O mundo gira e eu girei com ele. Mas nunca mais esqueci aquela boléia, comendo pão com mortadela, Celia me olhando pensando qual seria nosso futuro, Jan sorrindo com a viagem. Sorrisos inocentes de uma criança que sabia que os pais velariam pelo seu futuro.  

    

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Um pouco da minha vida.


Saudades da minha terra!
Um pouco da minha vida.

Oh! Que saudades que tenho

Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!
Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras
À sombra das bananeiras,
Debaixo dos laranjais!

Casimiro de Abreu.

                    O tempo passa, e muitas coisas das nossas vidas vão sendo colocadas em uma parte do nosso cérebro, não esquecidas, mas para serem lembradas um dia. Eu sou um homem da terra. De muitas terras. De algumas cidades. Um dia destes li de Paulo Gondim, um poema, do seu lindo Ceará. “Minha terra tão querida, a quem sempre vou amar. Um dia eu deixei, mas voltarei, ao meu lindo Ceará”.

             Ninguém esquece sua terra natal. Sua cidade, seu estado, seus amigos, suas histórias tão queridas. Nasci na minha querida Minas Gerais. Oh! Minas Gerais! Quem te conhece não esquece jamais. Nasci em uma cidade perdida no longínquo norte do estado, pequena, sem nada para viver, quem sabe uma ou duas ruas calçadas, uma pracinha, mas eu? Morava a seis quadras mais longe. Casa de taipa, esburacada, rua sem calçamento, esgoto a céu aberto, doenças. Três irmãs foram para o céu ainda com menos de quatro anos. Eu quase fui.

            Dois anos que não lembro a não ser as histórias contadas por meus pais e irmãs. Sobraram duas delas e eu. Meu pai seleiro, família pobre, lá fomos nós para uma fazenda. Não me lembro de nada. Menos de um ano e de novo outra cidade do outro lado das Minas Gerais. Poucas lembranças. Mais três anos e de novo outra e outra até que com seis fincamos o pé por muitos anos em uma maior, bem ao lado do formoso Vale do Rio Doce. Rio Doce! Quantas saudades, quantas travessias, jangadas, comer ingá nas suas margens nas cheias, quantos peixes. Hoje soube que está como o Tietê. Dói-me fundo. Ali praticamente cresci. Fui lobinho, Escoteiro, viajando a pé, de bicicleta vivendo uma vida de aventuras sem pensar no amanhã. Voltei um dia em todas as pequerruchas cidades que vivi. Fiquei tempos na terra onde nasci. Passei ali menos de duas horas. Vi a casa onde comecei minha vida de homem terreno. Nas outras poucas lembranças de uma época que minha memória não arquivou. Não tinham mudado nada na visão dos meus pais. Nesta última foram treze anos, de alegria, felicidades até que um dia a mudança aconteceu.

           Meu pai doente, início da década de sessenta, diabete ainda desconhecida era melhor procurar médicos especialistas. Capital do Estado. Nova vida. Novo emprego. Usina Siderúrgica. Peão no inicio. Interessante. Nunca fomos ricos. Ouve fases, algumas remediados outras? Melhor nem comentar. Estudo? Terceiro ano de ginásio. Eu sou um Iletrado. Nunca fui Doutor. Aprendi muito na Escola da Vida. Não sei como fui convidado para ser o chefão Escoteiro do estado. Comissário Regional. Uma época de viagens. Cidades e mais cidades sendo engolidas pelo escotismo. Amigos e amigos novos sendo conquistados. Quantas histórias, quantas estradas de terra percorridas, quantas coisas ficaram para trás. Mas o tempo não para. Um dia alguém chegou para mim – Queres ser um Administrador de uma fazenda? Putz! Não pensei duas vezes. Celia ao meu lado. Sempre formidável minha linda Célia. Oito mil cabeças. Meu Deus! Que isso? Botas no pé, chapéu de couro, perneira, meu lindo gibão cravejado de brilhantes, um peitoril simples e lá estava eu vaquejando aqui e ali pelas largas e capoeiras da vida.

               Quantas aventuras. Viagens no Rio das Velhas, Sucuri de quinze metros, enfrentar a correnteza do São Francisco, enfrentar pistoleiros morrendo de medo. Pescarias, criação a parte, porcos, galinhas, tratores, um D-12 da Caterpillar, enorme me hipnotizava. Adora andar com ele prá e prá cá. Comprei uma vacada de um fazendeiro em Barra do Guaçuí, duzentas cabeças. 150 quilômetros de distância. Achei melhor trazer por terra. Para mostrar ao Diretor que eu era econômico. Pobre “bunda”. Seis dias ida e volta. A cavalo. Levando um gado fácil, mas trabalhoso. Cinco anos maravilhosos. Filhos crescendo. Precisavam de bons colégios. São Paulo. Meu destino final. Empregado. Luta constante. Osasco era minha morada, ou melhor, ainda é. A luta dizem que é renhida, difícil. Sempre ao olhar minha vida lembro-me do poema de Gonçalves Dias. - Juca-Pirama. “Sou bravo, sou forte, sou filho do norte”. Andei longes terras, lidei cruas guerras, vaguei pelas serras dos vis Aimorés...

               Ei, calma! Não sou bravo e nem forte. Mas o tempo vai passando. Os anos não perdoam. Não dá mais para trabalhar. Uma vil aposentadoria. Mas feliz. Muito feliz. Quatro filhos criados e casados. Oito netos, uma linda árvore genealógica dando prosseguimento as lides traçadas por milhares de anos no espaço. Rodei meio Brasil. Pisei em outras terras. Conheci outros rumos, outros destinos. Mudei demais. Não sei se fiz bem. Não vejo como traçar o meu destino de outra forma. Tenho dúvidas não arrependimento. Quem sabe nem todas as trilhas que escolhi deram em boas estradas. Um dia destes irei por aí. Sei aonde vou. Não posso levar mais minha barraca, minha mochila e meu chapéu de três bicos. Lá dizem tem lindos locais de acampamentos. Córregos dançantes de águas tão claras que dá para ver o passado e o futuro. Onde as florestas são verdes e as flores as mais lindas do universo.

               Sempre é bom lembrar o caminho. Sempre é bom ver o que se foi o que se fez. Nunca fui rico. Morei em casa de taipas. Morei em tantos lugares que de vez em quando perco a memoria onde estou. Meu carrinho está encostado. A vista já não é a mesma. As pernas obedecem reclamando. Obriga-me a forçar meus passos por aí. Melhor assim, pois sempre fiz isto em minha vida. Viajei meio mundo no lombo de uma bicicleta. Com meu Vulcabrás conquistei montes e vales desconhecidos. Adoro o que fiz. Adoro o que sou. Não tenho duvidas do que serei.

                 Eu gosto de São Paulo. Fiz dele minha morada por mais de 38 anos. Não sei se fiz aqui muito amigos. Os mais chegados já partiram para começarem tudo de novo com os novos tempos. Eu ainda não fui. Deus me reservou outro destino. Seja ele o que for estarei pronto a enfrentar. Mas sabem, não tenho medo, não tenho receios. O que tem de ser será. Não podemos fugir do nosso destino.

Uma vida eu vivi. 1947 ficou na memoria quando comecei. Os tempos são outros, minha vez chegou ao fim. Posso ter tido tudo e posso não ter tido nada. Hoje tirei o dia para lembrar. Hoje? Risos. Agora são todos os dias. Mas quer saber? Tenho orgulho do que fui, pois sempre guardei a Lei a Promessa e o Escotismo no meu coração. Lá é sua morada é para sempre!