EM ALGUM LUGAR DO PASSADO

EM ALGUM LUGAR DO PASSADO
Celia, 49 anos de felicidade. Não sei viver sem ela

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Histórias de minha vida. O casamento.


Histórias de minha vida.
O casamento.

              Acredito que todos tem uma história para contar do dia do seu casamento. Eu tenho o meu. Devem ter havido centenas e ou milhares como o que vou contar. Mas dizem que o que acontece com a gente sempre tem algum mais importante do que os demais. Sem querer é claro menosprezar ninguém. Mas vamos lá, isto aconteceu em setembro de 1964. Meu namoro durou um ano e o noivado mais um. Trabalhava na Usiminas, ganhando coisa de dois salários como hoje. Duro, queria casar, mas como? Nem os móveis conseguia comprar. Um fato interessante aconteceu, pois uma pseudo revolução da peãozada da usina mandou para a rua seus vigilantes. Eram caçados pelos peões pelas maldades que fizeram. Outra história já contada aqui. A diretoria da Usiminas ficou sem saber qual posição tomar, pois precisava de vigilantes para tomar conta das portarias e outras áreas importantes. Tiveram a feliz ideia de convidar os próprios trabalhadores para a função. A ideia era usá-los por alguns meses até que se formasse um novo corpo de vigilantes.

              Quando soube que pagavam mais 50% sobre o salario e que as horas extras eram liberadas deixei meu serviço no Alto Forno e lá fui eu me tornar vigilante. Deram-me uma guarita próximo ao bairro do Carandiru, bem afastado e eu costumava ficar lá por doze a quinze horas sozinho. Como Escoteiro aprendi a viver só, não foi difícil enfrentar quase três meses naquele fim do mundo. Valeu. Consegui juntar um dinheirinho. Marcamos a data do casamento. Minha sogra queria mais tempo, pois sempre tinha sonhado com uma festa para a filha, mas eu não podia adiar muito. Tivemos um problema, a Celia tinha dezesseis anos e o seu pai sumiu no mundo. Nenhum cartório queria fazer o casamento por ela ser menor e sem autorização do pai. A não ser se algumas providencias fossem tomadas. Publicar em jornais da cidade e da capital notícias dele por três meses. Caramba eu queria casar logo. Não podia gastar mais. Em Melo Viana onde morava meu amigo Carlos que dividia comigo uma república, ou seja, alugamos uma casinha de um quarto, sala cozinha e banheiro bem no fundo do quintal (que foi minha morada por algum tempo com a Célia) conhecia o Juiz de Paz do distrito e me disse que ele faria o casamento. Marcamos na igreja de Valadares cinco dias depois do casamento no civil.

               Minha sogra, minha querida sogra que aprendi a amar como filho era da moda antiga. Nunca deu folga para eu e Celia. Fomos todos e os padrinhos até Mello Viana, fizemos o casamento (ainda não tinha recebido o pagamento e um fato interessante aconteceu – Carlos me emprestou o dinheiro que tomou emprestado do Juiz de Paz que eu paguei com o próprio dinheiro dele – risos) e a Celia e minha sogra voltaram para Valadares. Ela sem o casamento na igreja não deixaria que eu e ela ficássemos juntos. Paradoxo – Casados legalmente, mas sem poder ficarmos juntos. Cinco dias depois foi realizado o casamento na Igreja. Foi um casamento até interessante. A igreja lotada, mas os pernilongos não nos deixavam em paz. Enquanto padre falava eu espantava os pernilongos sem prestar atenção nenhuma no padre.

                Depois do casório uma festinha, doces salgados e um sanfoneiro no quintal dirigia a orquestra. O meu trem iria partir às cinco e meia da manhã. Na estação diversos maquinistas, o chefe da estação, e outros manobristas e funcionários que conheciam minha sogra resolveram atrasar o trem para cumprimentos e cantorias. Paciência. As seis lá fomos nós para Coronel Fabriciano. Toda hora o Chefe do Trem passava para nos cumprimentar. Esteve na festa e bebeu além da conta. Risos. Pela primeira vez em quatro anos juntos eu pude abraçar a Celia. Nunca tivemos esta liberdade. Na chegada não tinha dinheiro para o taxi. Eram três e nenhum conhecido. Esperamos o ônibus. Daqueles antigos e só tinha dois na linha. Esperamos duas horas. Enfim chegamos. A casa onde eu e meu amigo vivíamos foi meu primeiro lar. Ele foi morar na pensão que antes morávamos. Tinha com o dinheiro extra comprado um jogo de quarto, uma mesa para a cozinha, quatro cadeiras e um fogão a gás (Era a lenha antes) e um radio de Ondas Curtas.

               Abri a porta da casa olhei para a Célia e disse – Enfim sós. Sonhava com isto. Mas eis que amigos chefes Escoteiros chegaram. Abraços efusivos. Olhem não foi fácil. Não tinha condições financeiras para uma Lua de Mel. Isto nunca existiu em meus sonhos. Os amigos só foram embora às oito da noite. Dois deles chegaram a almoçar comigo. Eram mais de vinte e se revezavam. As nove sozinhos de novo. Fechei a porta e lá estava ela sendo tocada. Abri. Era o Padre da Paróquia onde tínhamos o Grupo Escoteiro. Ele o Zé Pontes um marceneiro e Chefe Sênior. Ficaram até meia noite. Ao sair eu não aguentava mais. Agora era dormir. Não deu. O Carlos meu amigo e outro Chefe Escoteiro lá estavam na porta. Risos. Foi tudo combinado. Amigos são assim. Falei um palavrão e fechei a porta. Não adiantou. Vários deles eram violeiros. Ficaram até às cinco da manhã cantando, rindo e contando piadas de recém casados.

              São coisas que a gente não esquece. Fui criado sem muitos sonhos de adultos a não ser meu sonho de ter uma casinha pintada de branco, uma cerca de madeira também caiada de branco, rosas brancas e vermelhas, petúnias e sentar as tardes quando podia para ouvir em meu radio de Ondas Curtas a Radio Nacional e Mairinque Veiga. Nenhuma delas existe mais. Belas tardes de sábado quando ficava pregado ouvido o programa de maior sucesso em todo Brasil – Hoje é dia de Rock. Roberto Carlos nos seus primórdios. A vida voltou ao normal. O turno de oito horas me esperava, pois nosso horário na usina era de revezamento – de 8 as 16, de 16 as 24 e de 24 às 8 da manhã. Muitos anos assim. Mas quer saber? Sempre fui muito feliz. Nunca achei que isto era para pobre. Se fosse eu era um pobre rico de amor e de coração.

               Lembranças... Quem não as tem? Elas sim valem a pena voltar no tempo para ver que a felicidade existe. Basta olhar com carinho e analisar – Isto sim valeu a pena. Se pudesse não mudaria nada do passado!

Este ano quero paz
No meu coração
Quem quiser ter um amigo
Que me dê a mão...
O tempo passa e com ele
Caminhamos todos juntos
Sem parar
Nossos passos pelo chão
Vão ficar...

Marcas do que se foi
Sonhos que vamos ter
Como todo dia nasce
Novo em cada amanhecer...

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Era uma vez.... em uma fazenda... A historia de Zé Pindoba



Na década de 70, trabalhei por cinco anos, num empreendimento agropecuário no Norte de Minas. Foi uma das melhores épocas de minha vida. Vivi em plena natureza com minha mulher e meus filhos uma situação impar, aquela de estarmos juntos a cada minuto, em todo o tempo que lá estive.

A história contada abaixo pode quem sabe ser somente uma historia. Mas aqui não sei se a história supera a ficção. Quem ler que tire suas conclusões.


“Inté parece qui foi onti, inda me lembro de cumo se fosse hoje. A lua bunita que nem um quejo redondo resfolegava sua craridade por dentro das grades e eu aqui neste buraco sujo com meus pensamentos martratados pela dor da lonjura, me fazia lembrar-se de Rosamaria. Rosamaria, ah! – Meu Deus! Pru que teve qui sê ansim?”


ZÉ PINDOBA, UM VAQUEIRO QUE DEIXOU SAUDADES.

Sô Chico, andava por aqueles vales, correndo e sem enfrentar desafios pela frente. O velho Chico é o nosso amigo que fica lá pelas bandas do norte de Minas, nasce na serra da Mantiqueira e atravessa três estados do Brasil. Um rio que percorre a maior distancia da nascente a foz em todo o mundo. Em cima de uma pequena elevação, avistávamos as gaiolas (embarcações a vapor) indo e vindo, transportando um mundão de gente, de Pirapora até a Bahia. Eram quatro dias descendo e sete subindo. Redes, macacos, galinhas, cargas de toda espécie apinhada no convés.

Pescadores em suas tranas, canoas e caiaques varavam de margem a margem a procura dos grandes ou mesmo pequenos peixes. A força das águas do São Francisco não se compara ao por do sol amarelado de um dia quente, e a apenas meio ou mais quilômetros de suas margens já mostrava um terreno seco, sem vida, a espera de uma chuva que não vinha. O rio ali oferecia muito mais. Acima, corredeiras lindas, abaixo uma praia que refrescava quem se arriscava a pular em suas águas. Bem mais acima, a ponte da estrada de ferro, hoje desativada, que levava a Buritizeiro.

Naquela época se viajava de trem. Maria Fumaça e depois a Diesel. Mais de 8 horas da capital até lá. Após o asfalto, vir de ônibus não demorava mais que 3 horas e meia. O trem, infelizmente foi desativado. Uma pena. Lembro ainda, quando da chegada de uma gaiola, o pequeno porto ficava apinhado de gente, olhando, vendendo, esperando, ou mesmo quem sabe alugando seus braços para mais uma jornada de trabalho. Ali, a chegada da “Baianada” era uma festa.

Foi assim que conheci e vivi próximo àquela cidade, que aprendi a amar, e que nunca mais esqueci. Não sei até hoje como foi que fui parar ali, mas tenho certeza que foi um dos melhores anos de minha vida. Quatro léguas ao norte, no sentido de Montes Claros, a Fazenda São Vicente com seus 22.500 hectares de terra, com suas 3.500 cabeças de gado, fincada as margens do Rio das Velhas e do Velho Chico, fazia divisa com Várzea da Palma, perto da estrada que levava a capital do estado.

Mas não estou aqui para prosa, pois quero é contar uma passagem nesta terra, onde dizem que Cristo passou uma vez e nunca mais voltou. Como não sei quando poderei contar de novo, é melhor aqui falar e falar, da maneira com que vivi e acho que até esqueci. Espero que minhas escritas se espalhem de norte a sul e de leste a oeste, como se fosse o vento ou a brisa de um fogo de conselho, escondido em uma noite qualquer. Mas claro, só para os amigos chegados. Minha vida marcante, como administrador/gerente daquela fazenda, mostrou “causos”, lindas aventuras em cima de um cavalo, belezas nunca vista e depois que de lá saí, nunca mais encontrei neste mundo de Deus algum que se comparava com aquela vida.

Fazenda São Vicente ou do Banco, ou da Líder, dos grandes amigos sinceros e leais, do Nilo, do Geraldo Velho, do sô Manezinho, Antonio Vaqueiro, Geraldo Tratorista, Antonio da Linda, Negão, Geraldinho Vaqueiro, Sarduá e tantos e tantos outros que agora não dá para anotar.

Mas chega de caçenga e vamos aos entretantos.

“O gado, como se fosse um mar de chifres, estava sendo levado para a curralama principal, os mugidos, os pulos saltitantes de um e outro, o corre corre da bezerrada, uma vaqueiro campeia em seu cavalo aqui, outro acolá. Alguém lá na frente canta em voz alta, acreditando que o gado vai seguir o canto conhecido”. Te segura Mané! Pega lá Tonho Vaqueiro! É isto aí, sarta de lado seu bosta!”– Puta que pariu! To porco! Oia vaca veia disgraçada. Aiôô vamos vacada! Mais uma junta de gado. Isto para mim sempre é um espetáculo diferente. Quando fazemos um junta, meus pensamentos voltam no passado e me lembro com saudades daquele cabra da peste. Meu amigo Zé Pindoba.

É hoje faz muitos anos que ele se foi e outros tantos quando o conheci. Para mim, um dos melhores vaqueiros daquelas bandas. Apesar de tudo, da fatalidade do acontecido, de sua brutalidade, nunca, mas nunca mesmo vou esquecê-lo, jamais. Foi lá pelos idos da década de 70, num verão quente de inicio de março, aquele sol seco de quase 40’ graus, os pastos amarelados, sem uma nuvem no céu, que o Zé das Flores, (não se enganem, apesar do nome era muito macho!) um vaqueiro antigo foi embora. Sarduá, aquele que se intitulava vaqueiro chefe e um amigão, me procurou na sombra de um Caquí velho, também já seco:

- Oia seu Osvardo, num tá mole não. Tamo só eu e o Mané na Larguinha com mais de mir res. Tá foda!  Siô sabe qui num é mole não. Campiá na beira do rio, vacada veia, atolada até o jueio só de dois num dá. Assim aperta! – Continuá deste jeito nois tá porco! - Tá bem Sarduá. Sábado vamos a Bom Jesus tentar um homem bom. Quem sabe temos sorte e resolvemos o problema só com uma viagem.

Bom Jesus é afamado pelos seus vaqueiros. Fazendeiro que se preza só contrata naquela região. É um lugarejo de umas 500 almas, com duas ruas. Uma de ida e outra de volta. Uma pracinha simples e uma capela ao fundo. Numa das ruas tinha uma pequena farmácia, o armazém, um pequeno salão onde ficava uma pessoa responsável pela prefeitura da cidade próxima e um cabo da policia militar. Mais ao final da rua ficava o boteco do “seu Teneia”. No boteco, estava eu e o Sarduá. Não havia outros fregueses a não ser um bêbado deitado num canto do salão. Tenéia, o botequeiro, magro, sem bigodes, cabelos ralos e pretos, dentes cariados e amarelados, falava fanhosamente, mostrando um principio de tuberculose, muito comum naquela região.

Tomando de coragem, pedi uma pinga para mim e o Sarduá, forcei a bebida naquele copo sujo, pois de outra maneira sabia que não ia conseguir nada. – Pois é seu moço, tá meio difircil de arrumá um vaquero bom nestas bandas, teve aqui uma cumpania qui levo uns deis homes, junto foi treis vaqueros de primera. Inté qui foi bão num sabe, pois acabô as bagunça na vila e tá tudo Carmo. Memo tomando prejuízo, pois minhas pingas vendo poco. Num tem certeza, mas disse o Marquito onti, que do outro lado do rio tem um bão. Mas acho que num vai não. Tá prantando roça e seu mio tá bunito qui só vendo. Oia aqui só prá nois acho que ele vai perdê tudinho sô moço. Com esse sor... Quá, ele tá porco!

O homem quando começa a falar não parava. Era uma maritaca ambulante! Seu mau hálito enchia o boteco e se deixasse ele falaria a tarde toda. Mas eu precisava de um vaqueiro e não queria voltar de mãos abanando. - Oia, vou falá pru sinhô, incontraro o fio da Fracisca com mais de 30 facada, o bicho tava parecendo uma penera. Ninguém sabi quem foi. O delegado teve aqui e disistiu. Vai tá danado assim nos infernos xente! – Se cotinuá assim nois tá porco!

Falou, falou e falou até que desconfiado me chamou num canto e disse: - Seu moço se o sinhô tá inrascado e quizé tentá a sorte, aí tem um vaquero dos bãos. Não tem iguar nesta bandas. Campeia como o vento. Laça qui nem avião. Trabaia que nem uma mula e sé dé prá matá ele mata. Mas quando bebe, nem o capeta chega perto. É o diabo. Fica valente, prosa e dispois é isso aí que o sinhô tá vendo. Seu nome? Zé Pindoba!

Já tínhamos viajado uns 20 quilômetros numa estrada esburacada, poeirenta e a C-10 não fazia mais que 40 por hora. O sol apesar da tarde ainda estava insuportável. Sarduá comigo na boleia estava calado. Olhos fixos na estrada, pois sempre que eu fazia o que ele não gostava, fechava a cara e dizia – Quá, num sei não. Não teimava. Lá atrás na carroceria ia o Zé Pindoba. Se entendeu bem o que disse não sei. Só sei que depois de jogar na cara dele um balde de água e sacudi-lo bastante, topou vir trabalhar conosco. Não falou bulhufas. Salário, comida, lugar de dormir, não perguntou nada e não pediu nada.

Tinha passado uns dois meses que o Zé Pindoba estava conosco. Sarduá e Mané a principio não foram com a cara dele, mas passado semanas já estavam a elogiá-lo. O homem era um cavalo para trabalhar. Lá pelas quatro da matina já esta de pé e era o primeiro a chegar no curral. Quando chegávamos o gado de leite já estava preso, algumas vacas já desmamadas, a bezerrada berrando atrás da mãe e o Zé Pindoba cantando uma canção que nunca vi ou ouvi. Olhava para nós dava uma risada e dizia, - vai prá merda! –qui turma froxa! Tô aqui a tempo e só agora chega. Puta merda! – Assim vou deixá de dá minha mijada e faço tudo sozinho. E dava outra gargalhada e continuava cantando.

Terminado o serviço no curral, bebia um litro de leite vivo e se mandava para o campeio. Voltava lá pelas onze fazia seu almoço, dava uma cochilada e se manda de volta. Chega só pelas cinco. Não tomava banho (dizia que só aos sábados, pois se não gastava a pele), fazia a janta, sentava a porta do barraco que dei prá ele, acendia seu cigarro de palha, mascava seu fumo tranquilo. No inicio não bebeu, jurou para mim que tinha parado e que iria iniciar vida nova.
- Porra seu Osvardo, nunca fui nada na vida, agora quero miorá. Sinhô tá pagando bem, cumida, õ peste, Se num fazê força num vô cunsigui nada!

Era assim o Zé Pindoba. Toda conversa tinha que ter um palavrão. Não só eu, mas todos viram que ele era um vaqueiro de primeira. Trabalhador, sem frescura, amigo, boa praça, mas seu defeito demorou a aparecer. A principio devagar. E eu mesmo aos poucos já estava perdendo a paciência. Era a danada da bebida. Era difícil de acreditar, pois fazia seis meses que estava conosco e não tinha ainda tomado uma providencia mais severa.

Uma tarde com o sol amarelado e se pondo atrás da montanha do Arrió, eu estava sentado na varanda da minha casa, quando me chamaram as pressas na fazenda do Zeca dos bode. Peguei a C-10 e me mandei. Lá chegando vi o Zé Pindoba com uma garrafa de pinga não mão, bêbado feito uma égua (desculpe as éguas é só uma maneira de falar), querendo de todo jeito agarrar a mulher do Coluna e levá-la para a cama. Coluna coitado, já tinha levado uma cacetada na testa e meio zonzo num canto nem via o que acontecia em redor.

A mulher dele, gritando feito uma danada, com o Zé Pindoba agarrando ela pelos cabelos e arrastando até o quarto da choupana me viu, fungou, olhou de novo e disse – Oia seu Osvardo, vai prá porra, To sem muié a mais de méis e essa aqui vai trepa cumigo. Vê si num trapaia, fais favô. Fui até o carro, peguei o 38 que usava, voltei e disse – Olha Zé, se você não largar essa mulher agora e sair daqui, te meto uns dois balaços no bucho e aí você vai pegar mulher no inferno!

Ele me olhou, serio a principio e depois deu um sorriso debochado, balançando o corpo se aproximou e disse – Quando nasci mãe disse qui era fedaputa, se sô fedaputa tanto faiz morrê agora ou otro lugar. Vô imbora, mas num pensi qui é pru medo do revorve. Vô pru respeito cum sinhô. Me ajudô, me respeitô e dívida é divida. Pegou seu chapéu, olhou para o Coluna, deu uma risada e se foi. Voltei à fazenda e fui até o escritório para fazer a papelada de demissão do Zé Pindoba. Esperei ele curar da bebedeira. Passou a noite e pela manha ele não estava na choupana. Fui para o curral e lá estava ele. Me olhou, olhou os outros vaqueiros e repetiu o velho chavão – Vai prá merda! Qui turma froxa. Tô aqui a tempo e só tão chegando agora? Vai prá puta qui pariu. – Pensei comigo, deixe para lá. Quem sabe ele aprende desta vez.

O tempo foi passando e o Zé Pindoba sempre aprontava mais uma. Uma tarde fui chamado às pressas na curralama da Larguinha e lá chegando, vi o Zé Pindoba com ar debochado, olhos vermelhos (pinga na certa) encostado nas tabuas da cerca e quando me viu olhou, fungou e disse: - Sô Osvardo, num foi curpa minha, a vaca era parida e tirou de valente cumigo. Fui tirá bezerro dela prá tratá umbigo e ela me deu chifrada, quase me arrancô o saco! Tá doendo prá merda! Fiquei puto e dei uma cacetada na testa dela. Ela deito aí e fico cumo o sinhô tá vendo!- A vaca estava morta. Era uma vaca de uns 12 anos, mas achei que agora o Zé tinha passado das medidas. Chamei no Escritório a tarde e dei uma boa de uma sacada nele. Minha intenção era ver se ele me respondia mal e assim demiti-lo. Mas ele não falou nada. Ficou calado o tempo todo. Adiei mais uma vez sua demissão e acho que não tenho culpa do que aconteceu. Ainda acho que foi o destino.

Só quem conhecia o Zé Pindoba como eu podia avaliar melhor. Costumava vir a minha casa, e lá pelas oito da noite desligava o gerador de luz e uma visão sublime de um céu estrelado se abria e ele ficava comigo na varanda, olhando este céu, as estrelas, embriagado com a visão, pois ali estava um espetáculo inusitado. Zé sempre chegava de mansinho ficava comigo olhando, jogando conversa fora. Muitas vezes eu falava como era as estrelas, o céu, o espaço cósmico, falava de uma outra vida, de Deus e tentava mostrar a ele como nós humanos devíamos proceder. Zé, com cara de santo, balançava a cabeça, mas acho que não estava entendendo nada. Explicava o Zé dos animais, do amor a eles e ele fingindo, balançava a cabeça concordando.

Zé Miranda tinha uma cara gorda, baixo, com seus 50 e poucos anos, fala mansa como a não querer nada, sempre com um cigarro de palha na boca, chapéu preto de copa com abas dobradas, roupa comum de vaqueiro, botina clara, pisava macio e tinha muita conversa. E que conversa! Chegou numa segunda feira pela manhã. Fui alertado pela empresa de sua contratação. Sem me consultar diziam que entendia muito de novas aguadas, pastos, plantação de capim de diversos tipos, além de conhecer bem outras culturas. Diziam que seria de boa serventia para mim. Criar problema com isto não seria de bom alvitre. Afinal quem sabe ele poderia me ajudar?

Educadamente ouvi tudo o que dizia, mas sem me fazer de sabido, infelizmente conhecia tudo o que dizia saber. Com meus botões eu falava que aos poucos o colocaria nos eixos. No dia seguinte, pedi ao Zé Pindoba para mostrar a parte mais distante da fazenda. Combinaram em sair bem cedo no dia seguinte e assim foi feito. Iniciaram pelas largas do alto do Rio das Velhas. Não sei não, mas estava adivinhando o desfecho. Alguns acharam que o acontecido fora premeditado por mim e o Zé. De minha parte não.  Mas acho até hoje que tenho culpa. Logo após o serviço na curralama, partiram. Levaram uma marmita cada um, pois a viagem levaria o dia todo. E olhe, veriam somente uma pequena parte da fazenda. Se fossem conhecer tudo, levaria bem uns três dias.

La pelas dezoito horas comecei a ficar preocupado.  Não tinham ainda chegado. Pensei no pior, mas achei que o Zé Pindoba não chegaria a tanto.  Foi dito e feito. À noitinha o Zé chegou e nada do Zé Miranda. Perguntei o que aconteceu e ele disse meio sério e meio fingindo (sorria de leve) que o seu Miranda tinha deixado ele na mata e que iria seguir sozinho, pois sabia o caminho. – Seu Osvardo, quem sou eu prá discordá. Disse também que ele iria dar uma volta no capão da Larga Grande. No capão? Pensei eu. O local é um leito seco, sem água, espinhos para todo o lado, mata fechada e sem saída!

Naquela hora não falei nada. Chamei mais uns 10 vaqueiros e fomos a procurada do Zé Miranda. Levei varias lanternas, pilhas de reserva e claro, meu 38. Quase 3 horas da manhã, rouco de tanto gritar passei pelo Mané, Seu Geraldo Velho, Nilo e nada.  Do Zé Pindoba nem cheiro. O homem também sumiu. Seis da manhã, com o corpo cansado, moído, voltei para a sede, e fui até a cerca do pavão, quando vi o Mané o Zé Miranda e junto o Zé Pindoba. Outros vaqueiros começaram a aparecer.

Zé Miranda parecia um mulambo. Todo arranhado, roupas rasgadas, sangue espirrando na perna, na testa e chingava feito um danado – Se eu não fosse pai de família – dizia – enchia de chumbo o Zé Pindoba! – Ainda lembro-me da cara do Zé, ria baixinho e fingindo não ter culpa dizia – olhe se você não tirasse uma de besta, metido a sabido, não teria perdido. – Falou o Zé Miranda – Perdido sua mãe! Seu cachorro! Você me deixou lá no meio do mato, eu chamei você e você se mandou! – Seu filudaputa! – Seu filodumaegua!

Zé Pindoba fechou a cara virou para o homem e disse mostrando o punhal na cintura – Num tenho pai e mãe nesse mundo. Fui cagado num canto quarquer de um puteiro e se repeti de novo, te abro uma brexa de cabo a rabo! Zé Miranda foi embora naquele mesmo dia. Mais uma vez não mandei Zé Pindoba embora. Desta vez me senti culpado e quem sabe não foi eu mesmo quem armei tudo no meu pensamento?

O tempo foi passando e ele sempre aprontava uma e outra. Eu dizia e ele me respondia dizendo estar arrependido e que não faria mais. Notei que os vizinhos e caminheiros que passavam diariamente pela fazenda rarearam. Davam a volta pela fazenda do Anísio que aumentava em muito a viagem. Motivo? – Zé Pindoba. Um dia estava eu no escritório, todos os vaqueiros no campeio e chegou três homens a cavalo. Um deles se identificou como Delegado de Captura e começamos a conversar. Para melhorar a prosa, peguei uma garrafa de geremum, pinga da boa, feita do outro lado do rio pelo Camberra, que tinha um alambique de primeira.

 Logo começou a me fazer perguntas, sobre um homem. Me descreveu seu tipo, era um vaqueiro daquelas bandas, com o nome de Dionísio da Cruz. Falou que ele tinha umas 15 mortes nas costas. Matou o último num boteco as margens do São Francisco, perto de Buritizeiro. Ele dizia o delegado, era um perigo. Claro nunca matava pelas costas. Usava um punhal e uma garrucha velha, mas sempre pronta a funcionar. Nunca utilizava uma segunda bala. A primeira bastava. Depois de algumas horas se foram, não sem antes pedirem que se ver alguém como ele para logo em seguida contar na delegacia de Pirapora.

Não havia dúvida. Era o Zé Pindoba. Agora o assunto tinha mudado. Sua demissão deveria ser imediata. No entanto era época da vacinação contra aftosa e plantio de roça e achei melhor adiar uns meses. O Zé ficou. Não sei se foi uma desculpa, o que eu estava pretendendo, dar sempre uma nova oportunidade, acreditar no ser humano e quem sabe ele mudaria? Afinal todos sempre todos tem direito a uma oportunidade, mas talvez eu estivesse dando a um homem perigoso e que além de assassino poderia matar alguém na fazenda. Quem sabe até eu.

Um dos maiores defeitos do Zé Pindoba era a maneira com que tratava os animais. Ele achava que o animal veio a terra para servir o homem. Se o cachorro não obedecia, faca nele. Se a galinha não botava ovos, panela para ela. Animal tem que servir o dono seu Osvardo, dizia, ô intonse não vali nada! Em todo campeio lá estava ele, com um laço rodando, pega daqui, corre lá e pumba! Não errava. Jogava a rês no chão, amarrava as patas, olhava as feridas, tratava, desamarrava e dava um belo chute no trazeiro do bicho. “Zé diziam todos, um dia você vai pagar por isto”. – Mas sô Osvardo, foi só um chutinho! E ria desbragadamente. Quá, ele não tem jeito não.

Em meados de maio, não me lembro bem, foi até uma semana boa, pois tivemos algumas chuvas, claro que de manga (chuva por área, chove aqui não chove ali), mas sempre valiam. Quem sabe atrás delas viriam uma chuvarada das boas. Estávamos todo mundo em volta da lagoa, juntando um gado arisco e levando para a curralama da Larga Grande. Comprei uma grande quantidade de vermífugos e aproveitamos para vacinar também contra aftosa. Meu corpo naquela tarde estava todo moído. Mais de quatro dias correndo aqui e ali atrás do gado com os vaqueiros e minha bunda doía naquela cela infernal. Ainda não tinha o calo dos veteranos como me diziam.

Valia à pena, no entanto o espetáculo. Os pássaros assustados, as cascavéis ocultas no cupim, o barulho do gado, a poeira solta, e lá íamos nós levando o gado para o curral. Ali já no corredor (estrada estreita com cerca dos dois lados que terminava na porteira do curral) eu ia atrás, comendo poeira das boas, olhos vermelhos, ouvia alguns cantando suas canções prediletas, e como sempre achavam que o gado ficava manso com aquela maneira de cantar. Zé pindoba ia à frente, e ao chegar na porteira para abrir montado em seu cavalo Beiçudo, viu que ela estava agarrando e não abria.

Fez o que nunca se faz, principalmente com aquela boiada atrás. Desceu do cavalo e forçou a porteira. Tentava e tentava e o gado ajuntando forçando para frente. Claro que o gado sempre para quando vê o homem, mas naquele dia não parou. Foi um verdadeiro estouro!

Anos depois, estava eu de novo na junta, desta vez à frente, e abri com facilidade a porteira claro que a cavalo. O gado parou esperou e andando normalmente foi para a curralama sem correr, sem forçar... – É sempre assim que acontece. Sejas com quem seja.  O gado conhece, ele marca ele respeita.

Um mar de chifres, o céu azul, lá ao longe nas serras distantes algumas nuvens brancas correm rumo ao sol. Quem sabe pode vir alguma chuva. Vamo Redonda! Vamo Risoleta! Oia vaca veia! Aiô gado dos inferno. É eu me sinto bem aqui. No meu cavalo, naquela lida, vendo o tempo passar com a natureza em volta me sinto realizado. Isto me faz continuar aqui. Quanto tempo não sei, sou meio andarilho, hoje aqui, amanhã ali. Mas faz cinco anos que estou nesta lida.

Passo pela porteira que ao lado tem uma cruz de madeira fincada. Me benzo e peço a Deus pela vida dele. A poeira cobre tudo, o suor se mistura. Amanhã é outro dia. Ainda tenho muitas coisas que aprender. Quem diria algum dia que eu dormiria às sete da noite e acordaria às cinco da manhã?

Vamo Risoleta! Vorta Andorinha, vamo gado dos infernos! Oia caraio da porra!

O tempo passou eu passei com o tempo, outras historias aconteceram, mas agora sentado ouvindo o Miguezinho cantando na sombra deste pé de Pequi, começo a lembrar do passado com saudades e pensar que o destino é assim, não tem volta. Cada um escolhe seu caminho. Zé pindoba marcou. Ficou marcado para sempre em minha vida. Tudo é bom enquanto dura e melhor ainda se as lembranças marcam para sempre no nosso coração.



sábado, 5 de outubro de 2013

É doce morrer no mar! Você já viu a morte de perto?



É doce morrer no mar!
Você já viu a morte de perto?

               Não sei por que, mas muitos que conheço têm medo de falar em morte. Mesmo sabendo que um dia isto pode acontecer com ele nada feito. Ele se recusa, muda de assunto e quanto mais rápido esquecer melhor. Bem eu não sou assim. Mórbido? Não. Nada disto. É uma realidade e não temos como fugir. Mas porque estou comentando isto? Bem hoje me lembrei de vários fatos que me levaram bem perto da morte. Não aconteceu, mas poderia ter acontecido. Dizem que a hora quando chega não tem como fugir, portanto não era a minha hora. Quantos de vocês já viram a morte de perto? Contar até três e dizer – Estou morto! Tchau mundo parto reclamando, pois queria viver mais. Risos. Claro que quando isto acontece não dá para falar. Comigo foram vários fatos. Fatos que julguei depois do acontecido ter me salvado de boa. Vamos aos fatos. Tentando rememorar desde minha infância.

               1955 ou 1956? Não lembro bem. Eu e dois sêniores. Metidos a aventureiros. Agora resolvemos escalar uma pedra próxima a nossa cidade. Pedra alta, dizem que tinha mais de quatrocentos metros, acho que não. Máximo de trezentos. Sem nenhuma experiência, uma corda de oito metros lanches para um dia, um cantil cheio e lá fomos nós. Fácil no inicio. Experiência de alpinismo? Nenhuma! Nada de técnica, nada de materiais próprios para escalada. Não digo que a coragem valia. Ali era mais uma maneira de provocar acidentes e até fatais. Cem metros, cento e cinquenta, duzentos. Um vão de um metro por três. Uma vista espetacular. Três seniores rindo a valer de sua coragem. Eles eram os primeiros a escalar a pedra. Às três da tarde inicio da descida. Impossível. Um medo medonho. Tentamos sair pela lateral. Para cima não dava. A pedra era negativa. Positiva sim negativa não. Quatro e meia, um sol queimando. Lá em baixo um rio lindo serpenteando a cidade. Andamos vinte metros escorreguei. Cai na pedra lisa. Seria mais de duzentos metros queda. A corda amarrada se prendeu em uma saliência e me segurou. Fiquei balançando no ar. Olhei para baixo chorando. Escapei. Outra escalada? Nunca mais. Esta foi a primeira e última.

            1959 ou 1960? Meu primeiro emprego. Recém-saído do exército. Techint Engenharia. Asfaltando a Rio Bahia. Trecho de cento e cinquenta quilômetros. Função de Apontador de Horas. Fácil. Uma prancheta, caneta, marcar hora de chegada e saída de 80 homens. Se o Encarregado autorizasse ficar lá depois do horário para ver horas extras. Tudo no trecho. Máquinas correndo e zigzagueando. Serviço maneiro. Fácil. Gostoso. Um mês. Primeiro pagamento. Sorrisos nos lábios. Uns dez homens me procurando. - Cadê minhas horas? Que horas? Não marcou minhas extras? Filho da puta. Ou me paga ou te mato! Deitei a correr estrada abaixo. Atrás de mim uns cinco de facão e punhal. Nem deu tempo de rezar. Cheguei a Alpercata um arraial e me escondi em um bar. Eles lá fora. Sai filho de uma égua. Ou me paga ou morre. A polícia veio. Peguei o ônibus para minha cidade. Duas calças três camisas, duas cuecas e um chinelo ficaram lá. Nem para receber meu mês trabalhado eu retornei.

            1961 ou 1962? Desempregado. Aceitando tudo que aparecesse. Um anuncio no jornal. Lá fui eu. Vender livros. Eu? Nunca vendi nada. Quinze dias fazendo um cursinho. Se vendesse uma coleção já dava para passar um mês. Enciclopédia Larousse e Britânica. Ambas famosíssimas na época. Uma equipe de quatro. Percorrer várias cidades de minas e Espírito Santo. Terceira cidade. Tinha vendido uma e mais nada. Quieto no meu canto jantando na pensão. Os três amigos vendedores sentam ao meu lado calados. Comida gostosa. A cozinheira era excelente. As mesas em volta começam a encher de gente. Um zum, zum corre o refeitório. Olhei para ver o que era. Três homens armados. Um com escopeta e os outros dois com revolveres. Puta merda! Alguém vai morrer. Eles param na nossa mesa. – Quem é o Nonato? Nonato era o encarregado nosso. Mais antigo bom vendedor, vendia que nem água. Nonato ficou branco. Lívido. Gaguejou e saiu correndo. Nós atrás dele. Um tiroteio dos infernos. Consegui me esconder atrás de um muro cheio de capim colonião. Fiquei ali por horas. Voltei pé ante pé na pensão. Seu Armando proprietário já tinha separado nossas malas. – Sumam daqui e não voltem nunca mais! Estão jurados de morte! Andei a pé por dezoito quilômetros até Nova Era onde peguei o trem de volta para minha cidade. Mais tarde fui saber que o Filho da mãe do Nonato foi vender um livro e acabou por dormir com a mulher do cara. A cidade em peso sabendo. Vingança da honra não? Isto faz parte do folclore mineiro.

              1963 ou 1965? Usiminas. Auxiliar técnico de alto forno. Morava em uma casinha da siderúrgica em Candangolândia. Um bairro próximo. Minha bicicleta resolvia tudo. Trabalho de turno. Naquele dia inicio as oito da matina. Portaria IV. Eu montado parei. Milhares de peões aglomerados na entrada. - O que houve? – Revolta geral contra os vigilantes disseram. Mataram um dos nossos a noite. Eu sabia que os vigilantes não eram flor que se cheire. Contava-se na Radio Pião que eles tinham porões da morte. Pegavam um pião e acabavam com ele. Radio Pião ou você acredita ou não. Meia hora depois chega um caminhão. Um Velho Ford. Na carroceria uns quinze soltados. Em pé num tripé uma metralhadora ponto trinta. Enorme. Já era minha conhecida de exército. Um perigo na mão de um bom atirador. Peãozada atira pedras nos policiais. Eles abrem fogo. Nego correndo feito quati na mata. Eu larguei minha bicicleta e me escondi atrás de uma engradado de maquinário. Nunca vi tanto tiro. Gente gritando e berrando. Outros pedindo socorro. O tiroteio parou. A soldadesca se mandou. Minha bicicleta sumiu. Corri a pé para casa. Dia seguinte disseram que morreram mais de cem. Siderúrgica publicou que foram oito. E os feridos? Desta eu escapei.

               1966 ou 1967? Porto do Tubarão – Vitória. Precisava trabalhar. Perdi o emprego na Usiminas. Um filho e mulher para sustentar. Contaram-me que um grande complexo siderúrgico ia ser construído próximo ao porto do Tubarão em Vitória. Minha sogra morava lá. Um trem, quinze horas de viagem e cheguei. Onde era? Ensinaram-me que devia pegar qualquer caminhão lotado de pião que passasse entre cinco e meia e seis e meia da manhã. Ninguém ia saber que não era fichado. Assim fiz. Uma hora de viagem. A praia linda. Ainda virgem e com mato por todos os lados. Hoje arranha céus enormes. Um susto! Mais de três mil homens querendo trabalhar na porteira da entrada. O que fazer? Empurra e empurra cheguei próximo à porteira. Dois vigilantes mal encarados com cassetete na mão. Tentei falar me deram uma cacetada. Voltei. E agora? Escoteiro não se aperta. Precisava entrar. Sem falar com o Serviço de pessoal não ia conseguir nada. Subi o morro uns mil metros. Lá no alto atravessei a cerca. Andei uns quatrocentos metros e avistei o acampamento da empreiteira. Bem próximo à praia. Sorri. Não era bobo pensei. Comecei a descer e levei a primeira lambada. Uma duas e perdi a conta e os sentidos. Como apanhei. Acharam que estava morto. Todo ensanguentado. Estavam me arrastando atrás da cerca. Um encarregado de manutenção viu. Chamou um gerente que chamou uma diretora. Levaram-me para o ambulatório. Um carro me levou para casa com ordens de me pegar dois dias depois e levar até ela. Arrumei o emprego!

             1976 ou 1977? Fazenda São Vicente – Gerente da fazenda. Deixei o bigode crescer mais. Bigode dizem é sinal de autoridade. Aprendi a criar calo na bunda para andar a cavalo. Não pensem mal de mim. Sarduá me apareceu nem sei de onde. Tinha história para contar. Vaqueiro dos bons. Precisava. Admitido com carteira assinada. Bom homem, mas bebia demais. Um dia Manezinho me contou a história dele. Mais de cinco mortes nas costas. Sempre fugindo da Captura. Não parava em lugar nenhum. Eu devia tomar cuidado. Toninho Tratorista chegou correndo no escritório – Seu Osvardo tem um caminhão na estrada da larguinha roubando os mourões da cerca que o senhor vai fazer. Mourões de peroba. Caros. Difícil de conseguir, mas duravam uma eternidade. Meu cavalo arriado e no galope ainda peguei o caminhão parado enchendo a carroceria. Putz! Meu trinta e oito não levei. Estava na gaveta da escrivania. Mesmo assim mandei todo mundo descer. Tem cinco minutos para descarregar tudo gritei! Eles riram a valer. - Quem vai ser o homem que vai nos obrigar? Sarduá saiu detrás de uma moita de pequi. Uma merda de uma garruchinha de dois tiros na mão. Um tiro na janela do caminhão. Todos assustaram. – Cumpri as orde do seu Osvardo. Ainda tenho um tiro. Vai nos zoios do filho da puta que ficar parado. Descarregam. Foram embora. – Seu Osvardo, não andi desarmado. Vai levar um dia um tiro na bunda!

           1978 ou 1979 – São Paulo – Vila Leopoldina próximo ao Ceasa. Trabalhando na Mannesmann Comercial. Chefe de Depósito de Materiais. Quinhentos metros do viaduto Mofarrej. Hoje local de Shopping e grandes lojas. Antes um punhado de galpões caindo aos pedaços próximo a uma favela. A chuva começa a cair. Ninguém dá bola. A chuva não para. Cai com grande intensidade. Os depósitos (eram três) ficavam quase dois metros acima do nível da rua. A enchente começou. Comum naquela época. Não sabia deste pormenor. Avisaram-me que devíamos subir tudo em cima das mesas e sair. Liguei para a Diretoria. - Abandonem o barco me disseram. Deve ficar pelo menos três tomando conta. Convidei os três. Aceitaram. Hora extra não se joga fora. Fiquei com eles até às seis da tarde. Todos os demais funcionários já haviam saído com água no joelho. Minha vez. Quando cheguei à rua não dava pé. Tudo bem. Nadava bem. Mas ali não dava. A correnteza me arrastava em direção ao Tietê. Estava de roupa e blusa de frio. Pesou. Tirei a blusa os sapatos e a calça. Continuava a ser arrastado. Vi uma pequena árvore. Passei por ela e me agarrei. Não dava para subir. Não tinha galhos altos. Segurei como se segura a própria vida. Morrer afogado em plena São Paulo? Lá pela meia noite a água desceu. Voltei ao asfalto. Ninguém lá. Só meus filhos preocupados. Culpar a empresa? Não acho que ela não sabia. Mas acredite, nesta eu vi a morte de perto.


         Muitas outras, várias. Mas fica para outro dia. Lembranças. Quem não as tem?

sábado, 24 de agosto de 2013

Ouro Negro, o magnifico manga-larga do sertão.



Ouro Negro, o magnifico manga-larga do sertão.

               A beleza de um cavalo é indiscutível. O seu porte, a crina, o pelo macio faz dele um dos animais mais queridos do homem. Sempre foi um fiel amigo e sempre presente nos mais variados momentos da história. Hoje tirei o dia para falar de um cavalo. Não um cavalo qualquer e sim de um Manga-larga marchador, uma raça que remonta a coudelaria Alter-Real e chegou ao Brasil por meio de nobre da Corte Portuguesa. Dizem os criadores que o Manga-larga é a mais bela criatura depois do homem. Aconselham que o melhor mister é criá-lo, a melhor das ocupações tratá-lo e o maior prazer montá-lo. Este introito é para dar uma ideia do que seria Ouro Negro. O conheci na fazenda que trabalhei por seis anos como Administrador. Um empreendimento enorme e quando lá cheguei de animais não entendia bulhufas.

               Meus primeiros dias de administrador foram de um aprendizado enorme. Como qualquer responsável por uma fazenda teria que ter um cavalo. Diziam que sem um eu estaria nu. Mas como escolher? Eram vários vaqueiros e cada um tinha o dele. A manada dos manga-larga era enorme. Eram intocáveis. Ordens da diretoria. Mais de trinta animais. Todos eles capitaneados por Ouro Negro. Que cavalo! Lindo mesmo. Alto, enorme e para minha infelicidade arisco e selvagem. Considerado um grande reprodutor era tratado como um rei. Manoel era o mais Velho vaqueiro de lá. Não podia dar bandeira. Sabia que sempre aproveitavam dos novos e lhe davam sempre o pior cavalo. Mais tarde fiquei sabendo que eles riam a vontade quando os visitantes ou empregados escolhiam o Pimentinha. Um cavalo ainda novo, mas preguiçoso. Dois passos parava. – Manoel não conheço cavalos, você escolhe. Se daqui a meses souber que sua escolha foi para rir de mim te coloco na rua no outro dia!

              Ele escolheu bem. Deu-me uma égua rajada com porte de rainha. Chamava-se Cristal. Eu e Cristal ficamos juntos durante meus seis anos que lá permaneci. Acho que ficamos amigos apesar de sempre me dar uma canseira pela madrugada quando ia laçar para o inicio das lides do dia. Mas eu tinha uma queda mesmo era para o Ouro Negro. Ele sempre junto a sua manada como a dizer - Aqui mando eu! Pensei até em criar junto a mim um potrinho que vi nascer e que era filho dele. Não deu certo. Jurei para mim que iria montá-lo, pois Manoel me disse que todos que tentaram caíram. O único que ficou alguns minutos sem sela foi ele. Manoel era um gozador. Vaqueiro dos bons. Magro como uma caveira. Barba enorme negra, dentes cariados, chapéu de couro a moda nordestina, perneiras e gibão de couro fazia dele um autêntico vaqueiro nordestino.

            Contaram-me várias histórias sobre os que tentaram montá-lo. Muitos nem conseguiam colocar nele a sela. O Próprio Presidente da Empresa, a quem chamavam de comandante foi ao chão por várias vezes. Aprendeu a cair caindo. Foi um desafio. Adoro desafios. Ia montar o Ouro Negro ou não era o Escoteiro que pensava ser. Bolei um plano. Ia conquista o Magnífico Ouro Negro pela barriga. Ninguém iria saber. Todos os domingos a sede da fazenda ficava vazia. A vaqueirada, os tratoristas e outros funcionários não apareciam. Eu despistava pela manhã e ia jogar a “pelada” que todos os domingos aconteciam nas terras do Seu Geraldo Velho. Era divertido. Vinha gente de toda a redondeza. Uma das poucas diversões da peãozada. No retorno almoçava cedo e ia direto ao “piquete onde era a morada de Ouro Negro”. Um bornal cheio de milho atravessado em meu ombro.

            Ouro Negro no inicio nem deu bola. Coloquei várias espigas na grama, em um galho baixo e ele passava perto e olhava para mim e saia com seu porte altivo. Demorou dois meses quando ele se interessou por uma espiga. Aos poucos comia quando eu chegava e quatro meses depois aceitou comer na minha mão. Foi um dia de alegria. Se tivesse foguetes tinha soltado. Deixou daí em diante que eu o acariciasse e até concordou quando levei a escova para escová-lo. Agora precisava colocar nele a rédea e por último a sela. De novo ele sumiu no canto do piquete. Voltou e sumiu novamente. Um dia deixou que eu colocasse nele a sela. E a coragem de montá-lo? Chamei a Celia e os meninos para assistir. Não para exibir não. Seria se eu sofresse alguma acidente na montaria. Deixei a C-10 em ponto de bala caso em me machucasse para ela me levar Ao pequeno Hospital de Pirapora. Surpresa. Ouro Negro deixou que eu o montasse sem reclamar, sem pular ou empinar. Dei algumas voltas e ele obedeceu.

             As coisas sempre tem uma razão de ser. No mês seguinte recebemos a visita do Comandante e ele como sempre trouxe uma comitiva de amigos. Quer saber? Os amigos do comandante eram quase todos esnobes. Achavam que os funcionários estavam ali para servi-los em tudo e isto me desgostava. Falei um dia ao Comandante. Ele riu e disse que ficasse em casa. Passasse para outros esta incumbência. Estava na minha varanda ouvindo no meu radinho de pilha a Radio Nacional quando o Antonio Tratorista veio me avisar que estavam todos na curralama e fazendo apostas em quem montaria o Ouro Negro. O Comandante macaco Velho não montou uma única vez. Nem o Manoel arriscou. Muita gente fazendo barulho e ele sabia que Ouro Negro estava arisco. – Quanto oferecem Antonio? - Seu Osvardo, já passou de cinco mil reais.

              Falei com a Celia e ela achava que eu não devia ir. Mesmo que montasse poderia ser que o Comandante não visse com bons olhos. Eu estava de olho em uma Variant Brasília que a amiga de minha mana em São Paulo estava vendendo por ótimo preço. Precisava de um carro. Nunca tive um na vida. Peguei três espigas de milho, coloquei no bolso, montei na Cristal e fui para a curralama. Estava uma festa lá. A cerveja jorrava. Tonico Borra Mancha improvisou uma churrasqueira e a carne parecia gostosa. Procurei o Comandante. Senhor! Quanto todos irão me pagar para montar o Ouro Negro? O Comandante caiu na risada. Falou com todos e eles queriam ver alguém se esborrachar no chão. Faltava para eles este espetáculo. Juntaram os reais de cada um. Chegou a onze mil reais. Papagaio! Quer saber? Minha consciência doeu. Ninguém sabia da minha amizade com Ouro Negro. Tudo foi feito as escondidas. Mas dinheiro é dinheiro, negócio é negócio,

              Fui devagar sem fazer barulho até Ouro Negro. Muitos anos de experiência no escotismo para se aproximar de animais selvagens apesar de que ele não era. Quando me viu levantou a cabeça e relinchou. Assustei. Ele não fazia aquilo sempre. Deixou que eu o acariciasse, joguei nele a rédea e aos poucos fui encilhando. Coloquei uma espiga em sua boca. Ele não reclamou. Chegou o momento sublime. Pé no estribo bem devagar. Ele tremeu e senti na rédea que ele parecia não gostar. Aos poucos montei. Ele não reclamou. Balancei a rédea, pois não usava esporas. Nunca gostei delas. Senti que ele deu um tranco e saiu a toda para o fundo do piquete. Aguentei-me o quanto pude. Não cai graças a Deus. No final do piquete ele parou. Direcionei a rédea até a curralama. Ele obedeceu. Pela primeira vez mostrou toda sua pose de Cavalo Marchador. Que orgulho. Ninguém nunca o tinha feito marchar. Era nato no Manga-larga. Vi que todos estavam estupefatos. Não acreditavam no que viam.


                O dinheiro veio a calhar. Foi um final de tarde glorioso e até comi churrasco de colchão duro que detestava. O tempo todo fiquei com a consciência pesada e quando o Comandante partiu naquela tarde de domingo eu contei toda a história. Ele deu boas risadas. – Valeu Osvaldo, valeu, nosso churrasco e o desafio tiveram novo sabor. Um mês depois eu olhava na porta da minha casa meu primeiro carro. A Variant branca era linda. Dois anos de uso. Sentia-me nas nuvens. Dizem que do primeiro a gente não esquece e eu nunca o esqueci. Passado tantos anos, mais de trinta e sete anos nunca me esqueci daqueles belos tempos que se foram. Devia ter tirado uma foto de Ouro Negro. Não tirei. Foram anos e anos de amizade, mas nunca fiz dele meu cavalo da lida. Ele era um rei e como tal devia ser considerado. Li uma vez que o verdadeiro paraíso terrestre reside sobre o dorso de um bom cavalo. Dizem que seus relinchos levarão a fé, ressoando nos ouvidos dos infiéis e enchendo de medo seus corações. Aprendi que quem cuida bem de seu cavalo terá sempre uma fonte de perpétua felicidade. 

sexta-feira, 26 de julho de 2013

Lembranças gostosas que ficaram no tempo...



Lembranças gostosas que ficaram no tempo...

Hoje deixei minha mente viajar ao passado. Tem hora que cada um de nós aprendemos sem nunca pensarmos que estamos aprendendo. São coisas da vida e a vida nos dá lições para que nunca mais esquecermos. Vida feliz, família unida, meus dezessete anos e ainda considerado um jovem a busca de si mesmo. A escola ficou para trás, minhas raízes acreditava ser outra. Um erro que cometi. Se o destino fosse outro quem sabe não seria o que sou hoje. Um trabalho simples. Ajudando meu pai. Meu pai, grande homem. Humilde, simples caladão. Entendia meu ponto de vista, era como ele soubesse que cada um de nós tem uma missão. Sem saber o meu destino deixava o tempo mostrar até onde eu iria.

Era seleiro. Fazia selas para animais. Eu o ajudava no que podia. Fazer um cinto, uma meia sola em uma botina, um desenho nas abas das selas. Sempre um trocado no final de semana. Pouco mal dava para pagar uma entrada no cinema ou gastar no meu escotismo fantástico. Notei que em suas horas de folga ele estudava muito. A noite ficava até tarde com seus livros de estudo. Um belo dia foi a uma cidade onde tinha um amigo seleiro e vendo tudo. Não foi uma grande venda, pois seu amigo era pessoa simples como ele. Alugou um ponto pequeno bem próximo da avenida principal. Mandou fazer uma placa – Radio-técnico – Consertamos rádios e aparelhos elétricos.

Assustei, ainda eram poucos os que tinham um radinho. Um mês depois chegou um homem que não era da nossa cidade. Nas mãos um radinho de pilha. Deus do céu! Nunca tinha visto um. Papai virou mexeu e consertou. Grande homem meu pai. Um cursinho e de seleiro agora era um Técnico em Radio. O tempo foi passando. Ele não ficou rico, mas não deixava nos faltar nada. Eu pensei comigo porque não ser também um? Porque não ler os livros dele? – Ele riu. Não filho. Você tem de se inscrever no mesmo curso que fiz. Uma carta para o Instituto Monitor em São Paulo foi o inicio. Achei que seriam peças, desenhos técnicos, mas não foi nada disto. Primeiro uns livrinhos de matemática, caramba, nunca gostei de matemática, mas li e reli um por um. Mandava semanalmente as respostas pedidas.

Desisti cedo. Era sós equações, multiplicações e olhe hoje sou bom em cálculos graças aqueles livrinhos. Mas não continuei. Ainda ajudava meu pai. Sabia ver se uma válvula tinha queimado trocar uma ou outra peça, mas tudo sob orientação dele. Os trocados semanais continuavam. Um belo dia ele não foi trabalhar. Assim ficou por meses. Eu não sabia de nada. Mamãe chorava sempre e dizia – seu pai está doente. Acho que tenho de levá-lo para Belo Horizonte. Minhas irmãs trabalhando não deixaram faltar nada. Eu abria a oficina. Um ou outro radio até que arrumava, mas sempre na linha do que ele me ensinou. Alguns meses depois decisão tomada. Mudar para Belo Horizonte. Meu pai precisava ser tratado. Diabete. Uma doença desconhecida. Alugaram uma casinha em um bairro de periferia. Hoje nem tanto.

Lá se foi minha mãe meu pai, minhas irmãs. Capazes e conhecedoras logo estavam trabalhando. Eu fiquei com a missão de vender a oficina de meu pai e seus apetrechos. Também nossa casinha que nada mais era que um barracão em L. A gente aprende vivendo o fato. No escotismo é assim. Aprender a fazer fazendo. A casinha vendi logo. Já tinha combinado o preço com minhas irmãs. A oficina não. Tinha lá mais de vinte rádios que estavam para conserto. Precisava localizar os donos. Escoteiros amigos me ajudaram. Fiquei três meses procurando. O que sobrou vendi para outro radio técnico na cidade. Ele me garantiu que se aparece os donos dos últimos rádios que sobraram ele entregaria. Confie pois era homem de palavra.

Não voltei para BH logo depois de tudo vendido. Ofereceram-me um emprego. Venda de livros. Risos. Logo eu, um péssimo vendedor. Quatro meses viajando aqui e ali e o que recebia mal dava para as despesas. Dezoito anos me alistei no exército. Um dia conto todas minhas aventuras lá. Não foram muitas, mas tem algumas interessantes. Terminado o meu tempo e dado baixa fui embora para Belo Horizonte. É a vida nos revela surpresa. Dois meses desempregado. Usiminas está admitindo rapazes. Procurar o setor de pessoal. Lá fui eu. Aprovado. Uma passagem de trem até Ipatinga. Nenhum adiantamento. Uma mala daquelas antigas, um travesseiro enrolado, um cobertor na mochila desembarquei aturdido na estação de Intendente Câmara.

Como aprendi ali naquela Usina. Praticamente meu começo profissional. Tantas coisas aconteceram. Fica para outro conto e alguns já estão aqui neste meu blog. Nunca fui de tomar decisões que poderiam modificar o meu destino. Dizem por aí que se o cavalo estiver encilhado monte. Se não você vai perder a oportunidade de sua vida. Tive muitos cavalos encilhados em minha porta. Nunca montei em nenhum. Não tenho arrependimentos. Não adianta. Começar de novo sim voltar ao passado para recomeçar não.


O tempo lá fora está frio ainda. Venta e isto ajudar a aumentar a sensação de frio. Dizem os meteorologistas que mais três dias tudo vai mudar. Frio, não posso viver com ele. Voltar no tempo. Deixar a mente buscar a historia, historia de uma vida. Boa ou má, interessante ou não. A vida ainda não acabou. Muitas coisas irão acontecer e o passado não pode desaparecer. Que assim seja! 

domingo, 7 de julho de 2013

O meu amigo Carlos. Mais que um amigo.



O meu amigo Carlos. Mais que um amigo.

                  Muitos têm sua própria definição de amigos. Se procurarmos bem cada escritor, cada poeta tem sua própria maneira de descrevê-lo. Eu gosto de muitas que li e guardei comigo para ler de vez em quando. Mas amigos? O que é um amigo? Pergunto-me sempre e me ponho a pensar nos meus amigos que conviveram comigo hoje e no passado. A maioria eu tiraria o chapéu sem sombra de dúvida. Mas quer saber? Eu tive um diferente. Parece que o destino foi quem nos colocou juntos e que poderia ter durado para sempre. Para dizer a verdade nunca soube seu nome completo. Só Carlos o Escoteiro. Ficamos amigos durante três anos e depois nos separamos para nunca mais nos encontrarmos. Não era amigo de infância. Quando penso nele e sua vida depois que o conheci me vem na lembrança passagens que eu nunca mais apaguei da memória.

                            Eu morava em um alojamento de madeira onde dormiam oito homens em camas beliche na Usiminas. Só mesmo tendo sido Escoteiro para enfrentar aquilo. Eu tinha feito vinte e dois anos, mas não tinha medo da vida. Já sabia como enfrentá-la. Meu passado Escoteiro me ensinou muito. Eu trabalhava na “Boca” do Alto Forno um. Dois meses de admissão. Programador. Acompanhava a corrida de gusa líquido até a Aciaria, pesando o “panelão” cheio e caroneando em uma locomotiva a diesel e cá para nós, eu adorava aquilo. No outro turno conheci outro programador, o Raimundo. Mais velho. Nos seus trinta e cinco anos. – Olhe Osvaldo, vejo você falando e falando em escoteiros, tem outro que mora bem próximo ao meu alojamento que também só fala nisto. Todo mundo o chama de Carlos Escoteiro. Quer conhecer? 

                           O inicio de uma grande amizade. Passávamos horas conversando e contando nossas historias escoteiras. Ele tinha sido Escoteiro da Pátria um alto título que poucos no escotismo conseguem. Sua família de Juiz de Fora, seu Grupo Escoteiro também. Em uma semana colocamos as “lambanças” do passado em dia. Mas tudo não parou por aí. Quem é Escoteiro sabe. Não dá para ficar só de lembranças. Éramos novos, tínhamos que fazer os sonhos andarem. Escolhemos um cidade e lá fomos nós montar um grupo Escoteiro. Olha que não foi fácil. Durante toda a vida que vivemos juntos naquela usina sempre trabalhamos em turnos diferentes. Lembro que uma noite eu ia trabalhar pela manhã e ficamos eu e ele até cinco da madrugada para escolher o nome do grupo e a cor do lenço.

                           Nossa amizade era tanta que ficamos no mesmo quarto em uma pensão. Se fosse hoje tenho certeza que iriam nos julgar um casal de gay, mas naquela época não se falava sobre isto. Se quiserem saber, eu e o Carlos nunca fugimos do bom senso da lei do Escoteiro. Ela para nós sempre foi sagrada. O gasto para muitos detalhes e materiais do grupo Escoteiro nós fizemos com nossas pequenas economias A alegria dos primeiros meninos, as primeiras patrulhas as primeira matilhas valiam qualquer quantia gasta. O grupo cresceu. Carlos e eu éramos um só. Nossos salários eram calculados juntos para o que iriamos fazer e comprar. Ele para mim foi um grande expert de lobinhos. Criou na sede escoteira a mais linda Gruta de Lobos que já vi. Lá montou a Roca do Conselho e o bastão totem era sui-generis.

                            Em seis meses tínhamos uma Alcateia completa, uma Tropa e três patrulhas sêniores. Conseguimos na comunidade local vários adultos para ajudar e seis deles foram fazer os primeiros cursos na capital. Eu e ele vivíamos juntos em todas as horas que conseguíamos trocar ideias. Alugamos uma casinha e saímos eu e ele da pensão. Eu ia ficar noivo e sempre estava na cidade onde a Celia morava. Ela tinha uma amiga e o Carlos logo se interessou. Agora melhor. Noiva e amiga juntos. O tempo foi passando. Eu casei e ele também. Enquanto solteiro não saia de minha casa. Almoçava e jantava. Era meu irmão e meu amigo. Tinha este direito. Chegaram a condenar aquela conduta. Disseram que eu estava cego e não via o que acontecia. Pessoas não sabem o que significa amizade. Amizade profunda e sincera. Isto quase destruiu todo o trabalho no grupo Escoteiro.

                               Seu espírito de voluntariado se expandiu. Entrou para o sindicado da Usina pensando em ajudar. Sindicados naquela época eram mal vistos. Tentei alertar, disse que tínhamos um grupo Escoteiro para olhar, tínhamos família, eu já tinha um filho e ele logo teria o seu. Não adiantou. A revolução o pegou de mão cheia e de muitos panfletos do sindicado em sua casa. Foi preso e torturado. Quase o mataram. Abandonaram-no em uma estrada secundária entre Belo Horizonte e Sete Lagoas com as mãos amarradas, com duas unhas da mão arrancadas e mandaram-no correr. Começaram a atirar para cima e a dar gargalhadas. Voltou tristonho e taciturno. Já não era o mesmo Carlos. Sai da Usina. Emprestei a ele metade do que recebi de indenização. Nunca me pagou e nunca cobrei.

                               Alguns anos depois recebi a noticia. Tinha morrido de um horrível acidente no trevo da BR 040 em Juiz de Fora. Comprara um Karman Guia e uma carreta passou por cima. Não fui ao seu enterro. Só fiquei sabendo um mês depois. Chorei por dentro por muito tempo. Sinto falta dele. Das suas risadas, do seu jeito de falar e andar. Um bom sujeito. Um grande amigo. Nunca o esqueci. Até hoje de vez em quando me lembro daqueles tempos. Tempos de ouro. Um escotismo puro sem vaidades e sem trauma de mando ou ser chefão. Um escotismo onde a amizade era sincera e que quando isto existe tudo valeu a pena. De vez em quando me recordo de tudo. Sinto-me feliz em saber que o Grupo Tapajós que demos nosso sangue existe até hoje.


                               Foram três anos e pouco. Três anos que valeram por um eternidade. Conheci depois centenas e centenas de escotistas. Mas como o Chefe Carlos nunca mais vi. Puro nos seus pensamentos, nas suas palavras e nas suas ações. Que Deus o tenha!