EM ALGUM LUGAR DO PASSADO

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Celia, 49 anos de felicidade. Não sei viver sem ela

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

A Maria fumaça e o Vale do Rio Doce, doces lembranças.


A Maria fumaça e o Vale do Rio Doce, doces lembranças.

                    Viajar de trem sempre foi uma das minhas escolhas pessoais, era como se o mundo mudasse de rumo e eu seguia em uma direção escolhida por ele. Hoje não posso mais fazer isso, mas um dia se puder, quero de novo embarcar para uma viagem que pode até ser sem volta. Não vai importar. Minha alegria irá superar tudo, pois estarei fazendo a viagem que sempre fiz e nunca esqueci. É um privilégio uma viagem de trem. São tantas coisas que dificilmente poderíamos descrever todas. Quem viaja se diverte, sonha, vê um mundo diferente. A Maria Fumaça sempre foi um dos meus amores quando jovem. Margeando um rio, com seus apitos estridentes, uma parada em uma pequena estação, alguns saltam outros sobem. O cheiro do trem ninguém esquece. As fagulhas lançadas no ar, as paradas nas caixas d’água para matar a sede da locomotiva. E os guarda-pós? Usei muitos. Não sei por que, todos brancos.

          Muitas vezes alguns funcionários da ferrovia passam despercebidos. A gente na poltrona sonhando não sabe quantos estão trabalhando para que o trem siga seu destino. Ver a estratégia do manobreiro, simplicidade do guarda-chaves alterando o percurso do trem, da destreza do maquinista, do esforço do foguista alimentando a fornalha sempre faminta, do trabalho do pessoal da soca, a fazer os reparos necessários e o do fiscal de linha garantindo a segurança da viagem. É um espetáculo A parte. A locomotiva devagar ou correndo, durante o dia apitando, um som maravilhoso que devia encantar o maquinista que gostava de puxar o cordão do apito. As paradas nas estações, a aglomeração dos que chegavam e os que partiam. Os meninos com suas “coisas” vendendo e gritando – Olha o sanduiche de galinha, olha a manga madura! Doce de leite e doce de abobora quem quer? O apito do chefe do trem, ele devagar saindo da estação, a meninada correndo.

                   À noite, as luzes dos carros de passageiros acesas, a segunda classe, a primeira classe. Um espetáculo ver o condutor do trem, com seus bigodes imensos, seu uniforme impecável, e seu boné bem colocado na cabeça, começando seu périplo em todos os vagões. Uma rotina de anos, seu inconfundível apito para anunciar a partida do trem, e agora ali depois de percorrer os vagões da frente pedia educadamente – Bilhetes! Bilhetes! E todos sorridentes, com ele a mão para ver como ele picotava e perfurava numa manobra de deixar todos os passageiros embasbacados. Eu tinha conhecido todos os tipos de trem. Para mim as que mais gostava era da “Jibóia” enorme, gigante, com varias rodas. As “baldwins” me chamavam a atenção, por ser uma Maria fumaça pequenina. Tão pequena que sua chaminé abarcava todo seu todo.

                 Com era gostoso ficar ali na janela, vendo o trem cortando montanhas, apitando, soltando fumaça, mostrando que ali em seu caminho é ele quem manda. Quem teve o privilégio de viajar em uma Maria fumaça, de primeira ou segunda classe, não esquece nunca. Vai sempre margeando um rio, caudaloso ou não, ali vai ela, seguindo o seu curso natural. Seu destino uma próxima cidade, uma arraial, um sitio, um parada no meio do caminho. O barulho e o cheiro do trem é uma experiência muito viva. Sinto saudades da Maria-fumaça. Da volta da ferradura. Do guarda-pó para nos proteger das fagulhas lançadas pela locomotiva enfurecida. Das paradas na caixa d’água para matar a sede insaciável da Maria-fumaça. Do som inconfundível do apito do condutor que anunciava a partida do trem e depois percorria os vagões de passageiros para perfurar e vender os bilhetes. Do malabarismo dos guarda-freios puxando a corda e pulando de um vagão para o outro com o trem em movimento.

               Uma vez amigo de um foguista, ele me convidou para uma viagem de uma estação a outra. Trecho pequeno, mas foi para mim uma tremenda felicidade. Ver o maquinista olhando a frente, seu apito inconfundível (ele olhava para mim e sorria). O esforço do meu amigo foguista alimentando a fornalha sempre faminta. Difícil imaginar quantos estavam envolvidos para que aquele trem percorresse seu caminho, sem perigos, e chamando a atenção de todos que moravam próximo a linha.

                  Depois, passaram-se os anos e a Maria Fumaças foram trocadas por locomotivas a Diesel. Mesmo assim, minhas viagens nunca deixaram de acontecer. Lembro que com minha família, sempre íamos para passar uns dias em Vitoria, e o trem percorrendo aqueles trechos maravilhosos, as paradas nas estações, a meninada de novo gritando e vendendo frutas, salgados, uma festa. O condutor sorrindo a dizer bem alto “Próxima estação, Aimorés!”. É uma saudade imensa. Foi uma época maravilhosa. O Rio Doce caudaloso, águas límpidas (hoje não é mais) Era também um espetáculo a parte a passagem de trem por outro em alta velocidade.

                 Hoje não tenho mais esta oportunidade de viagem. Anunciam aos quatro ventos um tal de trem bala. Acho que não vou viajar nele. Não vai me deixar ver o rio, as paisagens, a meninada com aquela algazarra na estação. Não será o trem dos meus sonhos. O que foi ficou no passado. Difícil enfrentar a modernidade. Não sei se gosto dela.

            Meus filhos e meus netos não terão oportunidade de viver o que vivi. Não tem mais Maria fumaça. Não tem mais meninos vendendo frutas e salgados. Acho que nem o condutor do trem com seu uniforme impecável e perfurar os bilhetes com maestria não mais existem. É melhor ficar só com as lembranças. Estas sim mostraram uma outro época e a de agora não é para mim. Quem sabe serão para os meus filhos e netos.


"Lá vai o trem com o menino
Lá vai à vida a rodar
Lá vai ciranda e destino
Cidade noite a girar
Lá vai o trem sem destino
P’ro dia novo encontrar
Correndo vai pela terra, vai pela serra, vai pelo ar
Cantando pela serra do luar
Correndo entre as estrelas a voar
No ar, no ar, no ar.” 
 (O trenzinho caipira: Heitor Villa Lobos)

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