EM ALGUM LUGAR DO PASSADO

EM ALGUM LUGAR DO PASSADO
Celia, 49 anos de felicidade. Não sei viver sem ela

sábado, 5 de outubro de 2013

É doce morrer no mar! Você já viu a morte de perto?



É doce morrer no mar!
Você já viu a morte de perto?

               Não sei por que, mas muitos que conheço têm medo de falar em morte. Mesmo sabendo que um dia isto pode acontecer com ele nada feito. Ele se recusa, muda de assunto e quanto mais rápido esquecer melhor. Bem eu não sou assim. Mórbido? Não. Nada disto. É uma realidade e não temos como fugir. Mas porque estou comentando isto? Bem hoje me lembrei de vários fatos que me levaram bem perto da morte. Não aconteceu, mas poderia ter acontecido. Dizem que a hora quando chega não tem como fugir, portanto não era a minha hora. Quantos de vocês já viram a morte de perto? Contar até três e dizer – Estou morto! Tchau mundo parto reclamando, pois queria viver mais. Risos. Claro que quando isto acontece não dá para falar. Comigo foram vários fatos. Fatos que julguei depois do acontecido ter me salvado de boa. Vamos aos fatos. Tentando rememorar desde minha infância.

               1955 ou 1956? Não lembro bem. Eu e dois sêniores. Metidos a aventureiros. Agora resolvemos escalar uma pedra próxima a nossa cidade. Pedra alta, dizem que tinha mais de quatrocentos metros, acho que não. Máximo de trezentos. Sem nenhuma experiência, uma corda de oito metros lanches para um dia, um cantil cheio e lá fomos nós. Fácil no inicio. Experiência de alpinismo? Nenhuma! Nada de técnica, nada de materiais próprios para escalada. Não digo que a coragem valia. Ali era mais uma maneira de provocar acidentes e até fatais. Cem metros, cento e cinquenta, duzentos. Um vão de um metro por três. Uma vista espetacular. Três seniores rindo a valer de sua coragem. Eles eram os primeiros a escalar a pedra. Às três da tarde inicio da descida. Impossível. Um medo medonho. Tentamos sair pela lateral. Para cima não dava. A pedra era negativa. Positiva sim negativa não. Quatro e meia, um sol queimando. Lá em baixo um rio lindo serpenteando a cidade. Andamos vinte metros escorreguei. Cai na pedra lisa. Seria mais de duzentos metros queda. A corda amarrada se prendeu em uma saliência e me segurou. Fiquei balançando no ar. Olhei para baixo chorando. Escapei. Outra escalada? Nunca mais. Esta foi a primeira e última.

            1959 ou 1960? Meu primeiro emprego. Recém-saído do exército. Techint Engenharia. Asfaltando a Rio Bahia. Trecho de cento e cinquenta quilômetros. Função de Apontador de Horas. Fácil. Uma prancheta, caneta, marcar hora de chegada e saída de 80 homens. Se o Encarregado autorizasse ficar lá depois do horário para ver horas extras. Tudo no trecho. Máquinas correndo e zigzagueando. Serviço maneiro. Fácil. Gostoso. Um mês. Primeiro pagamento. Sorrisos nos lábios. Uns dez homens me procurando. - Cadê minhas horas? Que horas? Não marcou minhas extras? Filho da puta. Ou me paga ou te mato! Deitei a correr estrada abaixo. Atrás de mim uns cinco de facão e punhal. Nem deu tempo de rezar. Cheguei a Alpercata um arraial e me escondi em um bar. Eles lá fora. Sai filho de uma égua. Ou me paga ou morre. A polícia veio. Peguei o ônibus para minha cidade. Duas calças três camisas, duas cuecas e um chinelo ficaram lá. Nem para receber meu mês trabalhado eu retornei.

            1961 ou 1962? Desempregado. Aceitando tudo que aparecesse. Um anuncio no jornal. Lá fui eu. Vender livros. Eu? Nunca vendi nada. Quinze dias fazendo um cursinho. Se vendesse uma coleção já dava para passar um mês. Enciclopédia Larousse e Britânica. Ambas famosíssimas na época. Uma equipe de quatro. Percorrer várias cidades de minas e Espírito Santo. Terceira cidade. Tinha vendido uma e mais nada. Quieto no meu canto jantando na pensão. Os três amigos vendedores sentam ao meu lado calados. Comida gostosa. A cozinheira era excelente. As mesas em volta começam a encher de gente. Um zum, zum corre o refeitório. Olhei para ver o que era. Três homens armados. Um com escopeta e os outros dois com revolveres. Puta merda! Alguém vai morrer. Eles param na nossa mesa. – Quem é o Nonato? Nonato era o encarregado nosso. Mais antigo bom vendedor, vendia que nem água. Nonato ficou branco. Lívido. Gaguejou e saiu correndo. Nós atrás dele. Um tiroteio dos infernos. Consegui me esconder atrás de um muro cheio de capim colonião. Fiquei ali por horas. Voltei pé ante pé na pensão. Seu Armando proprietário já tinha separado nossas malas. – Sumam daqui e não voltem nunca mais! Estão jurados de morte! Andei a pé por dezoito quilômetros até Nova Era onde peguei o trem de volta para minha cidade. Mais tarde fui saber que o Filho da mãe do Nonato foi vender um livro e acabou por dormir com a mulher do cara. A cidade em peso sabendo. Vingança da honra não? Isto faz parte do folclore mineiro.

              1963 ou 1965? Usiminas. Auxiliar técnico de alto forno. Morava em uma casinha da siderúrgica em Candangolândia. Um bairro próximo. Minha bicicleta resolvia tudo. Trabalho de turno. Naquele dia inicio as oito da matina. Portaria IV. Eu montado parei. Milhares de peões aglomerados na entrada. - O que houve? – Revolta geral contra os vigilantes disseram. Mataram um dos nossos a noite. Eu sabia que os vigilantes não eram flor que se cheire. Contava-se na Radio Pião que eles tinham porões da morte. Pegavam um pião e acabavam com ele. Radio Pião ou você acredita ou não. Meia hora depois chega um caminhão. Um Velho Ford. Na carroceria uns quinze soltados. Em pé num tripé uma metralhadora ponto trinta. Enorme. Já era minha conhecida de exército. Um perigo na mão de um bom atirador. Peãozada atira pedras nos policiais. Eles abrem fogo. Nego correndo feito quati na mata. Eu larguei minha bicicleta e me escondi atrás de uma engradado de maquinário. Nunca vi tanto tiro. Gente gritando e berrando. Outros pedindo socorro. O tiroteio parou. A soldadesca se mandou. Minha bicicleta sumiu. Corri a pé para casa. Dia seguinte disseram que morreram mais de cem. Siderúrgica publicou que foram oito. E os feridos? Desta eu escapei.

               1966 ou 1967? Porto do Tubarão – Vitória. Precisava trabalhar. Perdi o emprego na Usiminas. Um filho e mulher para sustentar. Contaram-me que um grande complexo siderúrgico ia ser construído próximo ao porto do Tubarão em Vitória. Minha sogra morava lá. Um trem, quinze horas de viagem e cheguei. Onde era? Ensinaram-me que devia pegar qualquer caminhão lotado de pião que passasse entre cinco e meia e seis e meia da manhã. Ninguém ia saber que não era fichado. Assim fiz. Uma hora de viagem. A praia linda. Ainda virgem e com mato por todos os lados. Hoje arranha céus enormes. Um susto! Mais de três mil homens querendo trabalhar na porteira da entrada. O que fazer? Empurra e empurra cheguei próximo à porteira. Dois vigilantes mal encarados com cassetete na mão. Tentei falar me deram uma cacetada. Voltei. E agora? Escoteiro não se aperta. Precisava entrar. Sem falar com o Serviço de pessoal não ia conseguir nada. Subi o morro uns mil metros. Lá no alto atravessei a cerca. Andei uns quatrocentos metros e avistei o acampamento da empreiteira. Bem próximo à praia. Sorri. Não era bobo pensei. Comecei a descer e levei a primeira lambada. Uma duas e perdi a conta e os sentidos. Como apanhei. Acharam que estava morto. Todo ensanguentado. Estavam me arrastando atrás da cerca. Um encarregado de manutenção viu. Chamou um gerente que chamou uma diretora. Levaram-me para o ambulatório. Um carro me levou para casa com ordens de me pegar dois dias depois e levar até ela. Arrumei o emprego!

             1976 ou 1977? Fazenda São Vicente – Gerente da fazenda. Deixei o bigode crescer mais. Bigode dizem é sinal de autoridade. Aprendi a criar calo na bunda para andar a cavalo. Não pensem mal de mim. Sarduá me apareceu nem sei de onde. Tinha história para contar. Vaqueiro dos bons. Precisava. Admitido com carteira assinada. Bom homem, mas bebia demais. Um dia Manezinho me contou a história dele. Mais de cinco mortes nas costas. Sempre fugindo da Captura. Não parava em lugar nenhum. Eu devia tomar cuidado. Toninho Tratorista chegou correndo no escritório – Seu Osvardo tem um caminhão na estrada da larguinha roubando os mourões da cerca que o senhor vai fazer. Mourões de peroba. Caros. Difícil de conseguir, mas duravam uma eternidade. Meu cavalo arriado e no galope ainda peguei o caminhão parado enchendo a carroceria. Putz! Meu trinta e oito não levei. Estava na gaveta da escrivania. Mesmo assim mandei todo mundo descer. Tem cinco minutos para descarregar tudo gritei! Eles riram a valer. - Quem vai ser o homem que vai nos obrigar? Sarduá saiu detrás de uma moita de pequi. Uma merda de uma garruchinha de dois tiros na mão. Um tiro na janela do caminhão. Todos assustaram. – Cumpri as orde do seu Osvardo. Ainda tenho um tiro. Vai nos zoios do filho da puta que ficar parado. Descarregam. Foram embora. – Seu Osvardo, não andi desarmado. Vai levar um dia um tiro na bunda!

           1978 ou 1979 – São Paulo – Vila Leopoldina próximo ao Ceasa. Trabalhando na Mannesmann Comercial. Chefe de Depósito de Materiais. Quinhentos metros do viaduto Mofarrej. Hoje local de Shopping e grandes lojas. Antes um punhado de galpões caindo aos pedaços próximo a uma favela. A chuva começa a cair. Ninguém dá bola. A chuva não para. Cai com grande intensidade. Os depósitos (eram três) ficavam quase dois metros acima do nível da rua. A enchente começou. Comum naquela época. Não sabia deste pormenor. Avisaram-me que devíamos subir tudo em cima das mesas e sair. Liguei para a Diretoria. - Abandonem o barco me disseram. Deve ficar pelo menos três tomando conta. Convidei os três. Aceitaram. Hora extra não se joga fora. Fiquei com eles até às seis da tarde. Todos os demais funcionários já haviam saído com água no joelho. Minha vez. Quando cheguei à rua não dava pé. Tudo bem. Nadava bem. Mas ali não dava. A correnteza me arrastava em direção ao Tietê. Estava de roupa e blusa de frio. Pesou. Tirei a blusa os sapatos e a calça. Continuava a ser arrastado. Vi uma pequena árvore. Passei por ela e me agarrei. Não dava para subir. Não tinha galhos altos. Segurei como se segura a própria vida. Morrer afogado em plena São Paulo? Lá pela meia noite a água desceu. Voltei ao asfalto. Ninguém lá. Só meus filhos preocupados. Culpar a empresa? Não acho que ela não sabia. Mas acredite, nesta eu vi a morte de perto.


         Muitas outras, várias. Mas fica para outro dia. Lembranças. Quem não as tem?