O
meu amigo Carlos. Mais que um amigo.
Muitos têm sua própria
definição de amigos. Se procurarmos bem cada escritor, cada poeta tem sua
própria maneira de descrevê-lo. Eu gosto de muitas que li e guardei comigo para
ler de vez em quando. Mas amigos? O que é um amigo? Pergunto-me sempre e me
ponho a pensar nos meus amigos que conviveram comigo hoje e no passado. A
maioria eu tiraria o chapéu sem sombra de dúvida. Mas quer saber? Eu tive um
diferente. Parece que o destino foi quem nos colocou juntos e que poderia ter
durado para sempre. Para dizer a verdade nunca soube seu nome completo. Só Carlos
o Escoteiro. Ficamos amigos durante três anos e depois nos separamos para nunca
mais nos encontrarmos. Não era amigo de infância. Quando penso nele e sua vida
depois que o conheci me vem na lembrança passagens que eu nunca mais apaguei da
memória.
Eu morava em um alojamento de
madeira onde dormiam oito homens em camas beliche na Usiminas. Só mesmo tendo
sido Escoteiro para enfrentar aquilo. Eu tinha feito vinte e dois anos, mas não
tinha medo da vida. Já sabia como enfrentá-la. Meu passado Escoteiro me ensinou
muito. Eu trabalhava na “Boca” do Alto Forno um. Dois meses de admissão.
Programador. Acompanhava a corrida de gusa líquido até a Aciaria, pesando o
“panelão” cheio e caroneando em uma locomotiva a diesel e cá para nós, eu
adorava aquilo. No outro turno conheci outro programador, o Raimundo. Mais
velho. Nos seus trinta e cinco anos. – Olhe Osvaldo, vejo você falando e
falando em escoteiros, tem outro que mora bem próximo ao meu alojamento que
também só fala nisto. Todo mundo o chama de Carlos Escoteiro. Quer conhecer?
O inicio de uma
grande amizade. Passávamos horas conversando e contando nossas historias
escoteiras. Ele tinha sido Escoteiro da Pátria um alto título que poucos no
escotismo conseguem. Sua família de Juiz de Fora, seu Grupo Escoteiro também.
Em uma semana colocamos as “lambanças” do passado em dia. Mas tudo não parou
por aí. Quem é Escoteiro sabe. Não dá para ficar só de lembranças. Éramos
novos, tínhamos que fazer os sonhos andarem. Escolhemos um cidade e lá fomos
nós montar um grupo Escoteiro. Olha que não foi fácil. Durante toda a vida que
vivemos juntos naquela usina sempre trabalhamos em turnos diferentes. Lembro
que uma noite eu ia trabalhar pela manhã e ficamos eu e ele até cinco da
madrugada para escolher o nome do grupo e a cor do lenço.
Nossa amizade era
tanta que ficamos no mesmo quarto em uma pensão. Se fosse hoje tenho certeza que
iriam nos julgar um casal de gay, mas naquela época não se falava sobre isto. Se
quiserem saber, eu e o Carlos nunca fugimos do bom senso da lei do Escoteiro.
Ela para nós sempre foi sagrada. O gasto para muitos detalhes e materiais do
grupo Escoteiro nós fizemos com nossas pequenas economias A alegria dos
primeiros meninos, as primeiras patrulhas as primeira matilhas valiam qualquer
quantia gasta. O grupo cresceu. Carlos e eu éramos um só. Nossos salários eram
calculados juntos para o que iriamos fazer e comprar. Ele para mim foi um
grande expert de lobinhos. Criou na sede escoteira a mais linda Gruta de Lobos
que já vi. Lá montou a Roca do Conselho e o bastão totem era sui-generis.
Em seis meses tínhamos
uma Alcateia completa, uma Tropa e três patrulhas sêniores. Conseguimos na
comunidade local vários adultos para ajudar e seis deles foram fazer os
primeiros cursos na capital. Eu e ele vivíamos juntos em todas as horas que conseguíamos
trocar ideias. Alugamos uma casinha e saímos eu e ele da pensão. Eu ia ficar
noivo e sempre estava na cidade onde a Celia morava. Ela tinha uma amiga e o Carlos
logo se interessou. Agora melhor. Noiva e amiga juntos. O tempo foi passando.
Eu casei e ele também. Enquanto solteiro não saia de minha casa. Almoçava e
jantava. Era meu irmão e meu amigo. Tinha este direito. Chegaram a condenar
aquela conduta. Disseram que eu estava cego e não via o que acontecia. Pessoas
não sabem o que significa amizade. Amizade profunda e sincera. Isto quase
destruiu todo o trabalho no grupo Escoteiro.
Seu espírito de
voluntariado se expandiu. Entrou para o sindicado da Usina pensando em ajudar.
Sindicados naquela época eram mal vistos. Tentei alertar, disse que tínhamos um
grupo Escoteiro para olhar, tínhamos família, eu já tinha um filho e ele logo
teria o seu. Não adiantou. A revolução o pegou de mão cheia e de muitos panfletos
do sindicado em sua casa. Foi preso e torturado. Quase o mataram. Abandonaram-no
em uma estrada secundária entre Belo Horizonte e Sete Lagoas com as mãos
amarradas, com duas unhas da mão arrancadas e mandaram-no correr. Começaram a
atirar para cima e a dar gargalhadas. Voltou tristonho e taciturno. Já não era
o mesmo Carlos. Sai da Usina. Emprestei a ele metade do que recebi de
indenização. Nunca me pagou e nunca cobrei.
Alguns anos
depois recebi a noticia. Tinha morrido de um horrível acidente no trevo da BR
040 em Juiz de Fora. Comprara um Karman Guia e uma carreta passou por cima. Não
fui ao seu enterro. Só fiquei sabendo um mês depois. Chorei por dentro por
muito tempo. Sinto falta dele. Das suas risadas, do seu jeito de falar e andar.
Um bom sujeito. Um grande amigo. Nunca o esqueci. Até hoje de vez em quando me
lembro daqueles tempos. Tempos de ouro. Um escotismo puro sem vaidades e sem
trauma de mando ou ser chefão. Um escotismo onde a amizade era sincera e que
quando isto existe tudo valeu a pena. De vez em quando me recordo de tudo. Sinto-me
feliz em saber que o Grupo Tapajós que demos nosso sangue existe até hoje.
Foram três anos
e pouco. Três anos que valeram por um eternidade. Conheci depois centenas e
centenas de escotistas. Mas como o Chefe Carlos nunca mais vi. Puro nos seus
pensamentos, nas suas palavras e nas suas ações. Que Deus o tenha!
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