EM ALGUM LUGAR DO PASSADO

EM ALGUM LUGAR DO PASSADO
Celia, 49 anos de felicidade. Não sei viver sem ela

domingo, 18 de dezembro de 2011

Um "causo" do acontecido



Um “causo” do acontecido

Minha vida de gerente de uma fazenda foi cheia de atropelos. Esta historia começou logo quando cheguei. E terminou quando todos nós já estávamos juntos naquele sertão.  Não tinha ainda passado dois meses e a minha família não tinha feito a mudança da capital. Claro, esperávamos as férias escolares para que fosse feito a transferência e a mudança sem prejudicar os filhos.

Apesar de todos estes acontecimentos, saibam que passei ali naquela fazenda um dos melhores anos da minha vida.. O que aconteceu naquele dia, poucos vão acreditar e é melhor assim. Ficar como ficção vale mais que a realidade do fato. Entretanto fatos são fatos. Verdadeiros ou não. Risos.

Mudei completamente meus hábitos de cidade grande. Dormia cedo. Muito. Morava só e a noite não tinha ninguém para conversar. A sede central tinha um gerador, mas eu quase não o ligava. Um rádio de pilha me mantinha informado do que acontecia no mundo e mais nada. Quando ia a Pirapora comprava todos os jornais e revistas. Dava para me divertir durante a semana.

Como dormia cedo levantava todos os dias as quatro ou cinco da matina. Achava que tinha de acompanhar os vaqueiros em uma das curralamas que lá existiam, pois sempre neste horário tinham que apartar a bezerrada e tirar um pouco de leite das vacas. Nada de extraordinário. Pouco leite. Em cada curralama (eram três) sempre tínhamos uma media de 80 a 120 vacas paridas.

Era divertido. Eu gostava de tudo. Aprendi inclusive ainda escuro, a laçar um cavalo, arriar e me mandava a cada dia para uma das curralamas. Nos primeiros meses ficar em cima de uma cela, era um suplicio. Aos poucos como dizem os vaqueiros, fui criando calo na “bunda” risos. Em cada curral (eram três) sempre havia de dois a quatro vaqueiros. Dependia muito do numero da vacada parida.

Estava eu absorto em cima de uma cerca de madeira do curral, observando a apartação de alguns bezerros e vi uma nuvem de poeira vindo em nossa direção da estrada que saia das barrancas do Rio das Velhas. Não era comum visitas, mas fiquei alerta para saber quem eram. Aos poucos foram chegando. Eram quatro a cavalo. Admirei-me com um deles. Novo menos de 30 anos. Um chapéu texano, perneiras amarelas, e uma jaqueta de couro preta de dar inveja. O pior, um cinturão cheio de balas e dois revolveres um em cada lado nas respectivas capas.

Ali estava uma autentica figura recém saída do faroeste americano. Chegou, me olhou, olhou os vaqueiros, apeou a moda dos pistoleiros dos filmes de western, sem tirar os olhos e sem dar as costas. Desceu, fez sinal para eu aproximar. Apenas um dedinho. Quase morri de rir, mas vi que era coisa séria. Fiz sinal para ele vir até onde estava. Aboletado no alto da cerca e ele ficaria na parte baixa, e claro completamente dominado. Risos.

Olhou-me com uns olhos que em outras épocas iriam me fazer tremer. Disse-me falando baixo, que soubera que na fazenda tinha duas vacas de sua fazenda. Chamei o Manezinho. - Leve o moço para uma volta na lagoa. Deixe ele averiguar. Olhei para ele de novo e expliquei que não sabíamos de nada. Se por acaso achássemos avisaríamos. Não gostou. Montou com movimentos lentos. Partiram.

Passou-se quase um ano. Manezinho me procurou e disse que faltavam mais de 30 cabeças do gado do Pique Manero. Um piquete enorme que fazia divida com o rio das Velhas. Contaram para ele no puteiro em Pirapora (era um freqüentador nato e muito conhecido lá – risos) que elas estavam na fazenda do Mario Moreno. Riu e completou - O pistoleiro que esteve aqui ano passado é o administrador lá.

Não podia deixar passar em branco. Se isto acontecesse iria se repetir sempre. Saibam que não sou um valentão. Nunca fui. Mas era o gerente da fazenda, ou tomava uma atitude ou seria desrespeitado para sempre. Até aquele dia nunca tinha usado uma arma. Fora o Fuzil Mauser que usei no exército e uma metralhadora, mais nada. 

O delegado Amâncio disse não poder me ajudar. Ele não podia entrar lá sem provas. Era meu amigo, ia sempre à fazenda pescar na lagoa. Um dos poucos que deixava entrar.

Vendeu-me um colt barato um 38 cano longo. Disse que era uma boa arma. Comprei cinco caixas de balas. Fiquei dois dias no capão da larga grande dando tiros a granel. Parecia que eu ia para a guerra. Risos. Sabia que nunca atiraria em ninguém. A arma me amedrontava, mas me dava um ar de coragem. Numa sexta feira partimos. Seis vaqueiros. Não deixei ninguém ir armado. Só eu.

Foi um barato atravessar o rio das Velhas agarrado no rabo do cavalo. Nossas roupas ficaram presas nas selas. Poderíamos ter ido até a ponte de Várzea da Palma, mas era uma volta de mais de 25 quilômetros. Não foi difícil alcançar a sede da fazenda. Menos de duas léguas. (uma légua tem seis quilômetros) avistamos a casa sede. Pequena ao lado devia ser a casa do tal administrador da fazenda.

Não me sentia bem com tudo aquilo. Não estava tranqüilo. Não sabia a reação do pistoleiro. Batemos e ninguém nos atendeu. Esperamos uns vinte minutos e vimos ao longe um cavalo a todo galope. Era ele. Sem aquela pompa de pistoleiro do oeste. Vestia uma calça jeans desbotada e uma camiseta. Na cabeça um chapéu de couro comum. Chegou assustado.
Pediu desculpas por não estar em casa. Chamou a esposa dele e ela abriu a porta. Antes ficara com medo e se trancou. Devia ser ordens dele. Convidou-me para entrar. Só eu. Ofereceu-me um café ralo. Foi educado. Expliquei nosso objetivo. Jurou por tudo quando é Deus que não sabia de nada. Caramba! O homem estava uma seda. Totalmente diferente do pistoleiro que foi me visitar.

Perguntei se ele não se importava dos vaqueiros fazerem um campeio pelos pastos quem sabe alguma seria encontrada? Ele me disse que não tinha visto nada, mas como há tempos não tinha ido para um piquete ao norte da serra negra quem sabe elas poderiam estar lá escondidas. Dito e feito. Não eram 30. Eram mais de 80! Todas ainda com nossa marca.

Pediu desculpas. Jurou que não sabia de nada. Não discuti. Acho que tinha muito mais lá. Desde o gerente anterior que substitui. Não sei se ele se preocupava com isso. Após a junta partimos. Agradeci a ele pela acolhida. Esperava um tiroteio e vi um sujeito medroso escondido dentro de uma capa de valente. Chegamos às margens do rio já noite escura. Manezinho nos aconselhou a não atravessar o rio à noite. Sabíamos que o gado não se afastaria. Dormimos sob as estrelas. Já estava acostumado.

No dia seguinte atravessamos. Só um garrote guzerá metido a esperto deu trabalho. Não queria atravessar de maneira nenhuma. Cheguei em casa lá pela uma da tarde. Estava cansado. Fora para mim uma aventura.  Deitei de roupa e tudo na cama. Nem almocei. Dormi e só acordei no outro dia às quatro da manhã. Um banho, roupa limpa e lá ia eu laçar o Negro azul, um cavalo baio que era o meu favorito.

Na curralama da larguinha, O Mané e os outros contavam historias. Não escutei todas, mas esta ficou marcada também para eles. Encontrei lá o Honório. Ele sempre me procurava para comprar alguma vaca velha para seu açougue. Contei a historia para ele. Riu. Disse que todos os açougueiros sempre iam a fazenda dele para comprar uma vaca. Ele cobrava barato. Imaginei de quem seria essas vacas.  

Tudo na vida a gente aprende a dar valor. Cada dia que vivemos mais crescemos em espírito. É como se fosse uma escola que você não passa por ela. Ela passa por você. Célia e os meninos até hoje me pedem para contar a aventura. Todos me olhando e querendo saber se dei algum tiro. Adoro meus filhos. Hoje o mais novo passou dos 36 anos. Mas ainda lembro-me de todos eles correndo pelas campinas da fazenda, atrás dos avestruzes ou dos “cocar” (galinhas d’angola selvagens).


Valeu! Não só para mim, mas também para todos eles! Até hoje contam historias. Até o caçula. Tinha três anos e parece se lembrar de tudo. Não sei não. Mas como dizem por aí, histórias são histórias, nada mais que histórias!  

É apanhando que se aprende?



É apanhando que se aprende?

A vida que levamos e imprevisível. Cada dia é um dia e se olharmos bem nenhum é igual ao outro. Tudo pode acontecer e não temos a mínima idéia do minuto seguinte. Estes pequenos relatos são fatos que com o passar do tempo me serviram como experiência para que no futuro pudesse quem sabe mudar o meu destino. Seria possível?

Fazia um ano que a revolução de 64 tinha acontecido. Eu não via nenhuma mudança. Não acompanhava os quebra quebras, as guerrilhas, os roubos a banco as ideologias e ouvia de boca pequena que as prisões estavam abarrotadas e que a tortura estava matando. Eu não sabia de nada. Não tinha tempo de me envolver.

Quando trabalhava na siderúrgica tive um amigo que se envolveu com o sindicato local. Após a revolução de 64 ele foi preso. Procuraram-me também, pois disseram que eu era comunista. Nosso Grupo Escoteiro tinha um lenço vermelho. Não me encontraram. Estava a passeio em outra cidade. Mas meu amigo foi preso e apanhou muito. Chegaram a arrancar duas unhas da mão e uma do pé com um alicate para ele confessar. Confessar o que? São coisas que ficaram no esquecimento. Quatro anos depois morreu esmagado em um carrinho na Rio - Bahia.

Morava em um pequeno barracão de dois cômodos junto a minha família, e com mulher e filho não tinha tempo para estas coisas de idealismo de mudar os destinos do país. A minha preocupação era só uma, arrumar um emprego. Não podia continuar desempregado. Com menos de um ano de casado, me demitiram de uma empresa siderúrgica. Os motivos estão em outra historia aqui neste blog.

Saia de manhã, enfrentava filas, tentava fazer alguma entrevista, mas as dificuldades eram grandes. Poucas vezes tive a sorte de chegar até ao entrevistador. Mesmo levantando às 3 da manhã, nada conseguia. Estava a cada dia mais preocupado. Claro, minha família me ajudava, nada faltava a mim, minha mulher e filho. Mas nunca fui um parasita e era questão de honra conseguir um emprego.

Os dias foram passando e nada. Só via batalhões do exercito correndo atrás de pessoas no centro da cidade, a cavalaria pisoteando e eu quase entrei de gaiato em uma. Como tinha aprendido a lição não era ali que voltaria a acontecer.

Explico melhor, em épocas passadas voltava para minha casa à noite, após um namoro com minha atual esposa, vi uma multidão correndo. Era um estouro de pessoas. Corri com minha bicicleta atrás de um gradil de uma árvore plantada e ali fiquei.

Tentava passar despercebido, mas fui surpreendido por um policial militar. Ele com uma pequena tabua me deu uma tremenda lambada no traseiro. Como doeu. Na hora não vi o policial. Achei que podia ser outra pessoa. Revidei. Apliquei um enorme soco em seu nariz e o sangue brotou aos borbotões.  Foi um inferno, três ou quatro me pegaram de jeito e só não deram um corretivo maior (mesmo assim apanhei bastante) na hora porque me conheciam. Era já um pioneiro e tinha muitas amizades. Mesmo assim me trancafiaram e só lá pela madrugada meu Chefe de Grupo apareceu (era militar) e me soltou.

Mas isto é outra historia. O que aconteceu depois quando lembro dou belas gargalhadas. Vamos voltar a historia inicial. Não conseguia encontrar um emprego. Não tinha “pistolões”, não conhecia nenhuma alta autoridade. Só mesmo a sola do meu sapato, que já estava ficando gasta. Bendito o Vulcabrás valente. Você comprava um e ficava enjoado dele por anos.

Um dia li em um jornal que uma grande Usina de pellets (minério de ferro) estava sendo construída na capital de um estado brasileiro junto ao porto local. Como minha sogra morava na cidade em epígrafe, não pensei duas vezes. Deixei a esposa e o filho na casa de meus pais e parti cheio de esperanças.

24 horas viajando em um trem pelo Vale do Rio Doce. Sempre uma viagem adorável, mas já bastante rotineira. Cheguei à noitinha. Minha sogra me esperava. (tinha passado um telegrama, muito usado na época). Ela era uma excelente pessoa. (até hoje é) Prestativa e não media esforços para ajudar.

No terceiro dia, fui sondar o local da usina. Assustei-me. Vi na entrada (era somente uma cerca de arame farpado que ia de oeste a este até sumir de vista e com uma cancela tipo porteira de fazenda (não vi as construções) uma guarita, mais de 10 vigilantes e uma multidão incrível, Acho que para mais de três mil pessoas. Naquele dia vi que ali nunca conseguiria entrar. Era bem próximo do mar. Uma linda praia ficava a direita da estrada. Hoje ali tem enormes prédios e a praia é uma das melhores da cidade.

Minha sogra foi até um Vereador do bairro falou sobre meu assunto e ele entregou a ela uma carta com pedido de emprego (mimeografada inclusive com sua assinatura). Sem nenhum valor é claro, mas não disse nada para minha sogra. Isto acontecia muito com políticos de meia tigela. Não tinham contatos e faziam de tudo para aparecer.

No dia seguinte, peguei um caminhão que levava funcionários lá, levantei cedo, não era quatro horas da manhã. Ao sinalizar para o veículo acharam que eu também era funcionário e me deixaram subir na carroceria. Achei que o caminhão passaria direto pela portaria da entrada. Puro engano, ao chegar à cancela antes de abri-la, mandaram todos descer e apresentarem seus documentos de trabalho. Assim como eu, pelo menos mais quatro lá estavam. Desci sem graça e foi aquela vaia. Plano 1, fracassado. Risos

Tive que esperar os caminhões de retorno lá pelas 18 horas. A casa de minha sogra era longe e pegar ônibus estava fora de cogitação. Não tinha dinheiro. Fiquei ali próximo aquela multidão sem almoço e sem água. Dinheiro curto não podia comprar nada.

Não desisti. Nunca desisto facilmente. Voltei lá outras vezes, mas só para traçar um plano e entrar na empreiteira e assim tentar com alguém conseguir alguma coisa. Do jeito que via nunca seria admitido. Uma vez por dia aparecia um vigilante que devia ser o chefão e escolhia um ou dois e entrava com ele.  No mais naquele portão só via um ou outro levando uma surra dos vigilantes. Eles gostavam de bater.

No dia do plano 2, levantei cedo, entrei em um caminhão e antes de parar na cancela, desci rápido, e voltei uns 300 metros na estrada. Já tinha traçado um plano. Iria subir o morro uns dois km, depois entrar a NNE (era escoteiro e sabia como). Mais uns 400 metros e encontraria a cerca. Depois atravessá-la e tentar avistar os galpões da empreiteira. Daí, só a sorte diria o que iria acontecer.

Assim fiz, logo ao atravessar a cerca, avistei a uns 700 metros os barracões. Sorri, meu plano estava dando certo. Agora era saber a pessoa certa para conversar e pedir o emprego. De repente, sem esperar levei um chute no traseiro. Logo foi pancada por todo o corpo. Como apanhei. Fui encontrado por três vigilantes. Eles conheciam a “mutreta”. Apanhei tanto que fiquei desfalecido.

Fui levado para o ambulatório e dando entrada, um encarregado de manutenção me viu e achou um absurdo tudo que estava acontecendo. Eles, os vigilantes me arrastavam na terra, todo ensangüentado. Chamou a atenção de todos e procurou o setor competente. Lá disseram a ele que se não dessem um corretivo, haveria centenas tentando atravessar a cerca. Ele sabia quantos permaneciam lá na cancela e não falou mais nada.

Logo me fizeram vários curativos, fui seguro por um deles e já podendo andar mesmo com dificuldades me arrastaram em direção a cancela. Meu corpo doía horrivelmente. Tinha receio de como ia chegar em casa.

Como em tudo existe sempre um final feliz, meu anjo da guarda apareceu. Era uma Doutora (assim todos a chamavam) e me vendo naquele estado me levou até seu escritório. Perguntou-me o porquê de tudo. Expliquei. Precisava trabalhar. Ela me disse que no outro dia se estivesse bom, que fosse até o asfalto (morava um pouco afastado dele) e lá pelas sete horas e trinta minutos ela passaria pelo local e iria me trazer e aplicar um teste. Ia depender de mim passar ou não. Sorri com a boca torta e inchada.

E assim fui admitido, mais uma empresa em meu currículo. Gostava de lá. A Doutora sabia reconhecer o meu trabalho. Comecei como assistente do departamento que ela dirigia e terminei como Gerente de Segurança. Um paradoxo. Os vigilantes que me espancaram eram meus funcionários. Pelo menos nunca mais espancaram ninguém. Eu não tinha pena. Que batia era demitido na hora.

Dois meses após, minha esposa chegou com meu filho. Família reunida novamente. Não esqueço aquele dia, estação apinhada de gente, uns esperando e outros sem o que fazer iam ali para um “fut”, ou melhor, um passeio.

O trem deu entrada na estação, era noitinha. Quando parou eu e minha sogra procurávamos os dois. E eis que apareceu minha esposa com meu filho, um ano de idade, com seus cabelos loiros destoava de tudo e de todos que estavam ali. Sorria, que lindo sorriso! Era uma visão linda. Lagrimas apareceram em meus olhos. Nunca esqueci aquele dia.

Trabalhei lá por alguns anos, a empreiteira foi desativada. A usina ficou pronta. Não conseguí nesta uma vaga. Só mesmo com muitos “pistolões”. Vitória não dava condições de emprego em outros lugares. Poucas fábricas. Ficar lá não adiantava. Um mês depois parti de volta a Belo Horizonte. O trem corria ao lado do rio Doce. Meus pensamentos estavam longe Dalí.  

E a vida continua, amanhã tem mais, pois o amanhã nunca morre.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Em algum lugar do passado. Uma volta no tempo




EM ALGUM LUGAR DO PASSADO

Tempos de desemprego, a procura de um lugar ao sol, uma pequena aventura em uma Usina Siderúrgica, e um aprendizado para a vida

Estava em pé, na plataforma da estação, com minha mala de lado e uma blusa amarrada ao pescoço. O trem que me trouxera já partira e poucas pessoas ainda se encontravam ali. Acredito que só funcionários e alguns transeuntes. Eu estava esperando o que não sei, melhor dizendo não esperava ninguém. Acho que tinha de decidir que rumo tomar. Corria o ano de 1961.

Pela saída do prédio da estação e pelas laterais, via uma estrada bem movimentada sem asfalto e cada veículo que passava deixava uma nuvem de poeira.  Atrás da estrada só o verde amarelado dos morros e nada mais podia avistar além deles. Não havia casas, prédios ou algum similar. Só a estação. Um calor de 35’ graus ajudava há melhorar o dia.

Virando para o outro lado, uma visão fantástica. Muito movimento, prédios, galpões, pessoas indo e vindo, carros em grandes avenidas asfaltadas, locomotivas pequenas indo para lá e para cá. Uma cerca corria paralela até onde se podia enxergar. Uns quatrocentos metros à frente, uma portaria cuja identificação não pude fazer na hora.

Era um grande complexo siderúrgico. Uma das maiores usinas siderurgicas do Brasil estava surgindo do nada para no futuro ser a maior fabricante em termos mundiais de chapas de aço e outros produtos importantes.

Estava desempregado há mais de seis meses. Mesmo morando na capital do estado a vida do desempregado não era nada fácil. Morava com meus pais e duas irmãs trabalhavam. Eu não queria ser um peso morto. A única oportunidade deu em nada. Vendas no interior. Viajei por algumas cidades. Quase fui morto por causa de um colega. Demiti-me. Um verdadeiro fracasso em termos de emprego.

Por um jornal vi que um escritório local estava admitindo jovens para trabalhar no interior, em uma usina siderúrgica e eu me enquadrava na solicitação. Fui aceito, me deram uma quantia em dinheiro (muito pouco) e disseram que eu tinha de apresentar em quarenta e oito horas na usina. Mal tive tempo de comprar a passagem, preparar minha tralha e partir na mesma noite de trem.

E ali estava eu. No meio do nada, perdido sem saber aonde ir. Tomei iniciativa e claro perguntando fiquei sabendo para onde me dirigir. Coloquei minha mala nas costas, enfrentei a estrada poeirenta por 3 quilômetros e me dei com uma construção de madeira que soube ser o escritório central. Nada há ver com o que existe hoje. Lá estava meu destino. Apresentei os documentos me “ficharam” e deram o endereço onde ia morar e o setor onde deveria me apresentar no dia seguinte. Recebi também uns tíquetes para refeições.

Vi-me de novo em pé, na beira da estrada, a poeira fazendo uso de sua valentia. Por informação onde devia ir, era mais de 6 quilômetros. Um local atrás da usina, grandes construções de madeira, quartos com quatro beliches e se não tivesse sido escoteiro teria dado meia volta ali mesmo.

O inicio, o que aconteceu naquele dia e na primeira semana fica para outra vez. Para dizer a verdade uma epopéia. Não era um pata-tenra. Já tivera uma experiência em uma construtora há dois anos atrás, que me colocou em situações interessantes para quem quer aprender a enfrentar a vida pelo seu lado mais difícil. O tempo passou e dois anos depois me casei.

Morava em uma cidade próxima, minha condução era um caminhão FENEME lonado. (Uma marca que deu início a grandes montadoras nacionais – FNM). Cem a cento e vinte homens embolados na carroceria, espremidos, alguns dormindo sobre os outros. Uma viagem de quase duas horas para ir e outro tanto para voltar. Com mais 8 de trabalho, não era nada fácil enfrentar aqueles horários curtos e longos. Turno de 8 as 16, de 16 as 24 e de 24 às 08 horas.

Há tempos notava que o corpo de vigilantes da usina não era de brincadeira. Eram ali mais de 16 mil operários (a maioria peões de obra). Falava-se na “Radio Pião” que existia na sala deles, um porão onde ensinavam os funcionários mais indisciplinados a cumprir suas ordens. Diziam ainda que muitas mortes ali aconteciam. Claro, a “Radio Pião” era nosso único contato dos segredos que se passavam na alta cúpula da Usina.

Não dava muito crédito, pois sempre fui uma pessoa cumpridora dos meus deveres e nunca tive qualquer altercação com eles. Talvez minha disciplina tenha pecado pelo meu futuro lá. Mas isto é outra história.

Um dia, ao chegar ao portão 4 para trabalhar, vi uma imensidão de peões, funcionários todos aglomerado (mais de 3.000), se revoltando, incentivando ninguém a entrar. Próximo, tinha um almoxarifado aberto, onde se colocava toda espécie de mercadorias para a construção da usina. Na hora não sabia o motivo. Mas depois vi que era uma revolta geral, pelos maus tratos do corpo de vigilantes da Usina.

Com medo, os vigilantes e a diretoria da usina pediram reforço policial. Naquela época eram poucos. Um caminhão sem lona chegou com uns 20, e o pior, em cima da carroceria um policial com uma metralhadora ponto 30 pronta para atirar. Quem conhece sabe como é. Fiquei muito preocupado. Tinha servido o exército e sabia do estrago que ela poderia fazer. Vi que ele tremia e era uma questão de horas para puxar o gatilho.

Durante umas duas horas só se ouvia gritos dos peões. Começaram a chingar os soldados, os vigilantes, e alguns querendo mais, resolveram jogar pedra nos policiais. Ninguém da Usina apareceu para dialogar. Reforços eu sabia que não tinha, pois naquela época o numero de policiais era pequeno.

Olhe, foi à conta. O que eu temia aconteceu. O policial que manejava a metralhadora abriu fogo. Foi um desespero. Uma multidão como o estouro de uma boiada. Larguei minha bicicleta comprada com tanta dificuldade e me escondi atrás de uma grande caixa de madeira. Ali fiquei tremendo e vi que alguns peões escondidos atiravam nos policiais. Depois, da bicicleta não vi nem sinal.

Uma hora de tiros e acabou a bagunça. Vi muitos peões deitados, mortos ou feridos não sei. Minha bicicleta nova, comprada em cinco prestações tinha sumido. Nesta hora minha preocupação era voltar a minha casa. Não tinha idéia do que estava acontecendo lá. Graças a Deus que não havia nada e ninguém nem sabia do ocorrido.

Foram três dias de distúrbios. Chegaram mais policiais das cidades vizinhas. Um quebra quebra generalizado. Cansados, os peões incitadores foram para suas casas. Eu fiquei em casa todo o tempo. Só voltei quando soube que todos os vigilantes foram demitidos e a guarda extinta. Um carro de som convocava todos para o retorno ao trabalho.  

Disseram depois que só oito peões tinham morrido. Não acredito. Vi com meus olhos mais de cem pessoas sangrando e gemendo, outro tanto sem movimento nenhum. Mas como não tínhamos a presença da imprensa e nenhuma emissora existia ainda naquela época, ficou o dito pelo não dito.

Os dias foram passando, criaram uma nova guarda, com funcionários da usina, tentando melhores as relações entre um e outro. Era difícil. Mas conseguiram o intento durante uns nove meses. Eles estavam pagando bem para os funcionários que quisessem se transferir para o corpo de vigilantes (quase o triplo do que ganhava) e com muita hora extra. Era o que eu precisava. Noivo com casamento marcado nada melhor para mim. (hoje vejo que não adiantou muito)

Ali fiquei por bom tempo. Casei me mudei para mais perto da usina e um dia me demitiram. Era esperado. Uma empresa de consultoria tinha sido contratada e ao contrário do pensamento japonês, que achava que precisava de cinco para o trabalho de um. Bem ela não pensou assim.

Para encerrar aprendi que nem sempre os melhores amigos são confiáveis. Demitido só receberia de deixasse a residência da usina entre outras obrigações. Sem isto não seria indenizado. Procurei os amigos para me fazerem um empréstimo e conseguir me mudar. Todos ficaram com medo de partir e não voltar para pagá-los. Descobri então que os que não são meus amigos são os melhores amigos. Difícil de entender não?

O João “bunda” desculpe o termo, mas este era seu apelido, morava perto da minha casa, tinha uma longa cicatriz no pescoço, baixo, atarracado, casado com três filhos. Eu o conhecia muito pouco. Veio me procurar e ofereceu para ajudar. Perguntei por que ele confiava, ele disse você é um Escoteiro e eu sei que eles são honestos.

Ah! O João “bunda” (até hoje não sei o seu nome completo). Fiz questão de pagar centavo por centavo e ao aumentar com juros o empréstimo ele se recusou a receber. Quando parti com meus haveres e com minha esposa e o primeiro filho num velho Chevrolet, vi com tristeza que os demais amigos do peito e que estavam sempre na minha casa não apareceram só o João “bunda” foi se despedir com a família.

Fora um deles, dos demais amigos nunca tive notícias. Hã, esqueci, quando voltei para receber fui descoberto pelo grande amigo que não me ajudou e chorando me pediu uma quantia emprestada. Emprestei. Fiquei com pena. Nunca mais recebi.  

Saí dali, só voltei passando pela estação de trem ou carro próprio, olhando, recordando, lembrando quando cheguei, e vendo como está hoje aquela cidade e a Usina. De trezentos habitantes (só a cidade) hoje tem quase trezentos mil.

Tudo muda tudo que acontece em nossas vidas tem uma razão de ser. Guardo boas lembranças. Do caminhão lonado, da poeira, até dos amigos do passado estão firmes na lembrança. Amigos que nunca foram tão amigos. Gostaria de saber do João “Bunda”. Um homem que merece todas as recordações e que mesmo não sendo o meu maior amigo, superou a todos pela sua honestidade. Para ele eu tiro meu chapéu.


quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Ele era o meu pai


Ele era o meu pai

Não tivemos um relacionamento muito próximo. Talvez pela época, onde o respeito e a palavra senhor fazia parte do nosso vocabulário. Pequenos momentos talvez. Ele me contou diversos fatos de sua vida. Não muitos porque se fosse hoje eu queria saber muito mais.

Não foi um pai diferente dos outros e nem tampouco excepcional. Mas para mim foi aquele que admirei e admiro até hoje. 

Quando pequeno, não sabia o que se passava não me preocupava com o dia, a semana, o ano. Ia à escola e depois era só brincar.

Na minha casa morava eu, minhas duas irmãs, minha mãe. Achava que éramos uma família feliz apesar de pobre. De uma pequena cidade só lembro-me de uma casinha branca, próximo ao cemitério. Por dentro não lembro de nada.

De outra cidade, lembro da casa, de madeira, fundos para o rio e embaixo em um porão com piso de terra, alguns pobres aproveitavam a seca do rio para ali morarem. Quando chovia o rio invadia tudo. Também éramos muito pobres, pois em volta de uma pequena mesa, sentávamos em caixotes para as refeições.

Graças a Deus que nunca passamos fome. Dificuldades sim. Elas existiam e eu pequeno não tomava conhecimento. O café da manhã, o almoço e o jantar sempre existiram.

Meu pai nesta época era Seleiro, aquele que fazia selas para cavalos e outros apetrechos afins.  Eu pequeno, 10 para 11 anos não ajudava a não ser aos sábados e domingo. Nestes dias ajudava a engraxar os sapatos de vários clientes do meu pai. Tornei-me um excelente engraxate.

Lembro do Grupo Escolar, do colégio, mas não me lembro de meu pai em momento algum me chamando a atenção ou brigando comigo. Era calmo e ponderado. Nunca em tempo algum me encostou a mão e por muito poucas vezes falou mais alto.

O tempo passou e ele um dia pegou uma mala e foi embora. O motivo não fiquei sabendo. Por um tempo ficamos ali até que conseguimos ir para outra cidade onde moravam alguns parentes que nos ajudaram.

Não lembro se senti falta dele, pois em poucos meses minha mãe foi ao encontro dele em outra cidade e me levou. O que conversaram não sei. Mas lembro da bicicleta que ele tinha e eu me esbaldei nela, caindo, montando e aprendi finalmente a andar sem problemas. Desta não esqueço nunca.

Ele voltou conosco para a nova cidade. Já havíamos alugado um barracão próximo à linha férrea. Minhas irmãs sempre foram um baluarte. Ambas estavam trabalhando e não queriam de forma alguma morar de favor. Depois, com muito sacrifício compraram um terreno e construíram um barracão em um bairro na periferia da cidade. Nele tinha o meu quarto próprio.

Eu gostava de morar ali. Apesar de não ter ainda água encanada da rua, havia uma cisterna com uma bomba manual. Todos que tomavam banho teriam que usar a bomba por mais de 100 vezes. Assim, mantínhamos a caixa cheia e o serviço feito por todos. 

Meu pai alugou um salão próximo ao centro. Ali montou uma oficina de rádio. Tinha estudado por correspondência e já era um perito no assunto. Achava que meu pai era muito inteligente. Tentei fazer o mesmo curso, mas não deu certo. Talvez porque não era bom aluno ou quem sabe não era o que queria fazer. Após as aulas ia trabalhar com ele e ver se aprendia alguma coisa na prática.

Ele me deixava ficar com a quantia dos serviços que realizava. Muito poucos por sinal, mas dava para ir ao um cinema, acampar e namorar.   

Nesta época já trocávamos idéias e ele com sua sapiência me mostrava algumas diretrizes da vida. Conversamos pouco. Foi ali que alguns fatos de sua vida me foram relatados, com parcimônia é claro.

Uma de quando moramos em uma fazenda de um tio meu, eu ainda com 3 para 4 anos, (não me lembro de nada a não ser da casa, pois posteriormente passei algumas férias lá) e o que ele fazia nunca soube.

Contou que tinha um conhecido de um arraial próximo e que eles sempre trocavam idéias e comentavam assuntos como dois bons amigos fazem. Um dia, conversado embaixo de uma goiabeira, próximo a nossa casa, chegou um homem a cavalo, não cumprimentou ninguém e sem apear sacou de um revolver e deu 4 tiros no amigo do meu pai. Ele disse que se assustou, mas o outro disse que era para ele se acalmar, pois recebera ordens para matar só o pretendido.

Colocou o revolver na cintura e partiu com a maior calma do mundo como se nada tivesse acontecido. Não ficou sabendo depois qual o motivo, nada. As bocas pequenas disseram que o defunto gostava de cantar as mulheres da vila. O delegado veio conversou providenciou a retirada do morto e o assunto morreu.

Uma vez comentou comigo sobre a revolução de 32 (constitucionalista). Ele jovem ainda se alistou. No inicio tudo era festa para ele e seu amigo um tal de Sebastião Barrigada. Andaram por aqui, por ali, até que foram levados de caminhão a uma pequena cidade já dentro do território paulista.

No primeiro confronto, foi só correria. Os paulistas inventaram uma matraca que imitava perfeitamente o pipocar de uma metralhadora ponto 30. Quando começou o barulho foi um Deus nos acuda. Depois virou rotina, ninguém mais tinha medo, pois já sabiam o que era.

Estavam em uma tarde em uma trincheira, deitados e o matraquear das metralhadoras pipocavam ali e lá. Seu amigo ficou em pé e começou a chingar os paulistas e rindo dizendo que com a mineirada eles não eram de nada. Meu pai gritou para o Bastião deitar. Ele não obedeceu. Achava que era mais uma piada dos paulistas.

Em dado momento o Bastião deitou de vez. Meu pai disse para ele, você deita ou não deita? E olhando viu que ele tinha um grande buraco na testa e do outro lado pedaços de seu miolo jaziam por todo o lado. Foi de estarrecer ele disse.

Não contou mais de sua luta, da sua militância política da revolução enfim de muitas outras coisas que eu gostaria de saber.  Sabia que ele gostava do partido da UDN e odiava o PSD. Porque não sei.    

O tempo passou. Ele ficou doente, quase morreu. Minhas irmãs o levaram para a capital. Lá achavam que ele teria melhores chances. Depois ficamos sabendo que era diabete. Pouco conhecida na época.

Muitos anos depois, morando na mesma cidade, aos domingos me dirigia a casa dele, passava lá o dia inteiro, mas conversávamos pouco. Acho que não havia assuntos, mas quanta coisa poderia ter sabido se tivesse perguntado.

Sua vida foi sem sobressaltos. Doente, andava aqui e ali fazendo pequenas caminhadas. O que sentia não perguntei. Devia ter perguntado. Ele nada dizia.

Morreu em uma semana qualquer. Fui ao enterro e chorei. Pensava no meu pai ali e não sabia o que ia acontecer com ele. Hoje, espírita que sou acho que ele não deve ter tido dificuldades para alcançar um lugar melhor para ficar. Mas cada cabeça uma sentença. Não sabemos de nada e qualquer um de nós pode sofrer conseqüências de atos anteriores com dividas mal pagas.

Senti falta do meu pai. Hoje com quatro filhos e muitos netos, me pergunto porque não ficamos mais próximos. Ele era assim e eu também. Ainda sou meio taciturno com os meus filhos. Herança? Não sei. Quero me aproximar e não consigo.

O mundo é assim. O livre arbítrio nos faz escolher caminhos que nem sempre são aqueles que deviam ser escolhidos. Faz parte do nosso crescimento.

Um dia vou me encontrar com ele. As perguntas que não fiz a farei. Se as respostas forem a que espero ótimo se não forem paciência.

Este era o meu pai. Um homem calado, bondoso, amigo que me deixou fazer o que queria. Nunca em tempo algum me fez qualquer admoestação.

Que ele seja feliz onde quer que esteja e que na sua próxima encarnação encontre felicidade que merece.

Coisas da vida



Coisas da vida

Cada dia que passa, mais vamos pensando no próximo que vai passar. Mas o amanhã é só previsível e o hoje já é uma realidade isto na medida em que o ponteiro do relógio avança e vamos esperando acontecer o que planejamos o que nem sempre dá certo.

Complicado não? Eu também achei. Mas não mudei, talvez por achar que assim é o começo e o fim ainda não sei como será. Vejam se entendem com a historieta que conto abaixo.

Quando casei, há muitos e muitos anos atrás, lá pelos idos de 1963, me lembrei de um fato interessante.

É bom os amigos saberem que não é como contam hoje os articulistas, os fazedores de historia e os artigos escritos de uma forma toda simpática, dentro de um principio de classe média, o que no meu caso não era real. Até a tal de lua de mel não existia. Ela era feita com dois dias de folga conseguidos a custo no trabalho.

Não tinha jaqueta preta, não podia comprar os discos da jovem guarda (dinheiro curto), e nem freqüentar o Guarujá, descendo a serra de Santos.

Mal tinha uma bicicleta de pneu balão, freqüentemente cheia com meus amigos. Um na garupa, um dirigindo e eu no quadro com uma perna em volta do guidon.

Mas vamos lá, casei, foi um dia festivo, com muitos amigos presentes, minha sogra é quem financiou a festa realizada na residência dela. Ficamos ali conversando bebendo um pouco (nunca fui de muita bebida) esperando a noite passar. Iríamos voltar para minha cidade onde iríamos morar às cinco da manhã. A viagem seria de trem, no expresso da manhã.

Quando casei, não tinha reserva financeira, não tinha casa própria e os móveis, uma cama, um guarda roupa, uma cristaleira comprei de um amigo que era marceneiro para pagar em 4 vezes. Claro que paguei. Com muito custo consegui um fogão a gás. Na época na cidade onde iria morar eles eram ainda “coisa de rico”. Geladeira? Muitos anos depois. Televisão? Risos. Quanto tempo demorou eu não me lembro.

Como o dinheiro estava curto, basta dizer que três dias antes, (do religioso) casamos no civil na minha cidade (minha esposa era menor e sem o aval do pai desaparecido, não quiseram fazer o casamento, assim fomos à cidade que morava, pois conhecíamos o juiz de paz) e fiz o pagamento assim:

- Meu padrinho, amigo do Juiz pegou 60 cruzeiros emprestado com ele, me emprestou e eu paguei ao mesmo Juiz o valor do casamento, ou seja, 60 cruzeiros. Entenderam? Olhem o Juiz também meu amigo ficou cismado, pois achava que conhecia algumas notas recebidas, mas deixa prá lá.

Quando chegamos a minha cidade, (a viagem era curta, apenas duas horas de trem) conversei com um amigo dono de um taxi, para me levar a casa em que iríamos morar, e se ele podia receber no fim do mês. Incrível não? Vocês não viram nada ainda.

Quando chegamos a casa (esta casa, também tem uma historia, mas fica para outra vez), lá encontramos alguns amigos a espera. Era sempre assim. Todos me queriam muito bem. Entramos (ainda não conhecia o costume de levar a mulher no colo para atravessar a porta e acho até que nem existia).
Minha esposa fez cafezinhos, serviu e nada dos amigos irem embora, lá pelas duas da tarde, despediram e saíram. Olhei para ela, um sorrisinho maroto. E surpresa, bateram na porta. Mais quatro amigos que chegavam. Queriam conversar e parabenizar.

Eu cansado e a esposa também, tivemos que ser educados e durante duas horas ali permaneceram. Quando saíram já passava das sete da noite, logo chegou o pároco, alguns casais da igreja que me conheciam. Deus do céu! Ficaram até a meia noite.

Foram embora sorrindo. Que dia. Claro tinha muitos amigos, mas aquilo parecia coisa combinada. Já preparávamos para dormir e eis que surge outros amigos, cujo turno de trabalho terminava às onze horas da noite, também resolveram nos visitar! – tudo isto na noite de núpcias! Incrível não?

Agüentei até duas da manhã e infelizmente fui mal educado, mandei embora o padre e os amigos.

Na saída, estavam todos ali, na minha porta. Mais de vinte pessoas. Rindo batendo palmas, cantaram (alguém levou um violão). Lá pelas quatro da manhã acho que não agüentavam mais e foram para suas casas me deixando a sós com minha mulher. O cansaço era muito grande e sempre achamos que alguns deles estavam à espreita nas janelas e esperavam o ponto culminante que claro não aconteceu naquele dia.

Só mesmo a noite, quando voltei do trabalho pude descansar e ter com minha esposa a lua de mel que não conhecemos no primeiro dia. Sempre de olho na porta para ver se não aparecia ninguém.

É bom ter amigos. Eles fazem falta. Hoje tenho poucos. Muitos que não conheço através desta telinha do computador. Acho que eles me querem bem mesmo sem me conhecer pessoalmente. Não há solidão mais triste do que a do homem sem amizades. A falta de amigos faz com que o mundo pareça deserto.

Hoje lembro com saudade de todos eles. Foram tempos bons. Uma amizade sem interesse. Não sei onde andam, e se ainda estão vivos. Mas valeu tudo que passei junto a eles. Se pudesse voltar no tempo o faria sem pestanejar. Mas o tempo não é mais nada que uma lembrança que se foi.

Uma viagem na Maria Fumaça pelo Vale do rio Doce


A Maria fumaça e o Vale do Rio Doce, doces lembranças

Viajar de trem sempre foi uma das minhas escolhas pessoais, era como se o mundo mudasse de rumo e eu seguia em uma direção escolhida por ele. Hoje não posso mais fazer isso, mas um dia se puder, quero de novo embarcar para uma viagem que pode até ser sem volta. Não vai importar. Minha alegria irá superar tudo, pois estarei fazendo a viagem que sempre fiz e nunca esqueci.

É um privilégio uma viagem de trem. São tantas coisas que dificilmente poderíamos descrever todas. Quem viaja se diverte, sonha, vê um mundo diferente. A Maria Fumaça sempre foi um dos meus amores quando jovem. Margeando um rio, com seus apitos estridentes, uma parada em uma pequena estação, alguns saltam outros sobem. O cheiro do trem ninguém esquece. As fagulhas lançadas no ar, as paradas nas caixas d’água para matar a sede da locomotiva. E os guarda-pós? Usei muitos. Não sei por que, todos brancos.

     Muitas vezes alguns funcionários da ferrovia passam despercebidos. A gente na poltrona sonhando não sabe quantos estão trabalhando para que o trem siga seu destino. Ver a estratégia do manobreiro, simplicidade do guarda-chaves alterando o percurso do trem, da destreza do maquinista, do esforço do foguista alimentando a fornalha sempre faminta, do trabalho do pessoal da soca, a fazer os reparos necessários e o do fiscal de linha garantindo a segurança da viagem. É um espetáculo A parte.

A locomotiva devagar ou correndo, durante o dia apitando, um som maravilhoso que devia encantar o maquinista que gostava de puxar o cordão do apito. As paradas nas estações, a aglomeração dos que chegavam e os que partiam. Os meninos com suas “coisas” vendendo e gritando – Olha o sanduiche de galinha, olha a manga madura! Doce de leite e doce de abobora quem quer? O apito do chefe do trem, ele devagar saindo da estação, a meninada correndo.

À noite, as luzes dos carros de passageiros acesas, a segunda classe, a primeira classe. Um espetáculo ver o condutor do trem, com seus bigodes imensos, seu uniforme impecável, e seu boné bem colocado na cabeça, começando seu périplo em todos os vagões. Uma rotina de anos, seu inconfundível apito para anunciar a partida do trem, e agora ali depois de percorrer os vagões da frente pedia educadamente – Bilhetes! Bilhetes! E todos sorridentes, com ele a mão para ver como ele picotava e perfurava numa manobra de deixar todos os passageiros embasbacados.

Eu tinha conhecido todos os tipos de trem. Para mim as que mais gostava era da “Jibóia” enorme, gigante, com varias rodas. As “baldwins” me chamavam a atenção, por ser uma Maria fumaça pequenina. Tão pequena que sua chaminé abarcava todo seu todo.

Com era gostoso ficar ali na janela, vendo o trem cortando montanhas, apitando, soltando fumaça, mostrando que ali em seu caminho é ele quem manda. Quem teve o privilégio de viajar em uma Maria fumaça, de primeira ou segunda classe, não esquece nunca. Vai sempre margeando um rio, caudaloso ou não, ali vai ela, seguindo o seu curso natural. Seu destino uma próxima cidade, uma arraial, um sitio, um parada no meio do caminho.

O barulho e o cheiro do trem é uma experiência muito viva. Sinto saudades da Maria-fumaça. Da volta da ferradura. Do guarda-pó para nos proteger das fagulhas lançadas pela locomotiva enfurecida. Das paradas na caixa d’água para matar a sede insaciável da Maria-fumaça. Do som inconfundível do apito do condutor que anunciava a partida do trem e depois percorria os vagões de passageiros para perfurar e vender os bilhetes. Do malabarismo dos guarda-freios puxando a corda e pulando de um vagão para o outro com o trem em movimento.

Uma vez amigo de um foguista, ele me convidou para uma viagem de uma estação a outra. Trecho pequeno, mas foi para mim uma tremenda felicidade. Ver o maquinista olhando a frente, seu apito inconfundível (ele olhava para mim e sorria). O esforço do meu amigo foguista alimentando a fornalha sempre faminta. Difícil imaginar quantos estavam envolvidos para que aquele trem percorresse seu caminho, sem perigos, e chamando a atenção de todos que moravam próximo a linha.

Depois, passaram-se os anos e a Maria Fumaças foram trocadas por locomotivas a Diesel. Mesmo assim, minhas viagens nunca deixaram de acontecer. Lembro que com minha família, sempre íamos para passar uns dias em Vitoria, e o trem percorrendo aqueles trechos maravilhosos, as paradas nas estações, a meninada de novo gritando e vendendo frutas, salgados, uma festa.
 
O condutor sorrindo a dizer bem alto “Próxima estação, Aimorés!”. É uma saudade imensa. Foi uma época maravilhosa. O Rio Doce caudaloso, águas límpidas (hoje não é mais) Era também um espetáculo a parte a passagem de trem por outro em alta velocidade.

Hoje não tenho mais esta oportunidade de viagem. Anunciam aos quatro ventos um tal de trem bala. Acho que não vou viajar nele. Não vai me deixar ver o rio, as paisagens, a meninada com aquela algazarra na estação. Não será o trem dos meus sonhos. O que foi ficou no passado. Difícil enfrentar a modernidade. Não sei se gosto dela.

Meus filhos e meus netos não terão oportunidade de viver o que vivi. Não tem mais Maria fumaça. Não tem mais meninos vendendo frutas e salgados. Acho que nem o condutor do trem com seu uniforme impecável e perfurar os bilhetes com maestria não mais existem. É melhor ficar só com as lembranças. Estas sim mostraram uma outro época e a de agora não é para mim. Quem sabe serão para os meus filhos e netos.

"Lá vai o trem com o menino
Lá vai à vida a rodar
Lá vai ciranda e destino
Cidade noite a girar
Lá vai o trem sem destino
P’ro dia novo encontrar
Correndo vai pela terra, vai pela serra, vai pelo ar
Cantando pela serra do luar
Correndo entre as estrelas a voar
No ar, no ar, no ar.”
 (O trenzinho caipira: Heitor Villa Lobos)