EM ALGUM LUGAR DO PASSADO

EM ALGUM LUGAR DO PASSADO
Celia, 49 anos de felicidade. Não sei viver sem ela

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Em algum lugar do passado. Uma volta no tempo




EM ALGUM LUGAR DO PASSADO

Tempos de desemprego, a procura de um lugar ao sol, uma pequena aventura em uma Usina Siderúrgica, e um aprendizado para a vida

Estava em pé, na plataforma da estação, com minha mala de lado e uma blusa amarrada ao pescoço. O trem que me trouxera já partira e poucas pessoas ainda se encontravam ali. Acredito que só funcionários e alguns transeuntes. Eu estava esperando o que não sei, melhor dizendo não esperava ninguém. Acho que tinha de decidir que rumo tomar. Corria o ano de 1961.

Pela saída do prédio da estação e pelas laterais, via uma estrada bem movimentada sem asfalto e cada veículo que passava deixava uma nuvem de poeira.  Atrás da estrada só o verde amarelado dos morros e nada mais podia avistar além deles. Não havia casas, prédios ou algum similar. Só a estação. Um calor de 35’ graus ajudava há melhorar o dia.

Virando para o outro lado, uma visão fantástica. Muito movimento, prédios, galpões, pessoas indo e vindo, carros em grandes avenidas asfaltadas, locomotivas pequenas indo para lá e para cá. Uma cerca corria paralela até onde se podia enxergar. Uns quatrocentos metros à frente, uma portaria cuja identificação não pude fazer na hora.

Era um grande complexo siderúrgico. Uma das maiores usinas siderurgicas do Brasil estava surgindo do nada para no futuro ser a maior fabricante em termos mundiais de chapas de aço e outros produtos importantes.

Estava desempregado há mais de seis meses. Mesmo morando na capital do estado a vida do desempregado não era nada fácil. Morava com meus pais e duas irmãs trabalhavam. Eu não queria ser um peso morto. A única oportunidade deu em nada. Vendas no interior. Viajei por algumas cidades. Quase fui morto por causa de um colega. Demiti-me. Um verdadeiro fracasso em termos de emprego.

Por um jornal vi que um escritório local estava admitindo jovens para trabalhar no interior, em uma usina siderúrgica e eu me enquadrava na solicitação. Fui aceito, me deram uma quantia em dinheiro (muito pouco) e disseram que eu tinha de apresentar em quarenta e oito horas na usina. Mal tive tempo de comprar a passagem, preparar minha tralha e partir na mesma noite de trem.

E ali estava eu. No meio do nada, perdido sem saber aonde ir. Tomei iniciativa e claro perguntando fiquei sabendo para onde me dirigir. Coloquei minha mala nas costas, enfrentei a estrada poeirenta por 3 quilômetros e me dei com uma construção de madeira que soube ser o escritório central. Nada há ver com o que existe hoje. Lá estava meu destino. Apresentei os documentos me “ficharam” e deram o endereço onde ia morar e o setor onde deveria me apresentar no dia seguinte. Recebi também uns tíquetes para refeições.

Vi-me de novo em pé, na beira da estrada, a poeira fazendo uso de sua valentia. Por informação onde devia ir, era mais de 6 quilômetros. Um local atrás da usina, grandes construções de madeira, quartos com quatro beliches e se não tivesse sido escoteiro teria dado meia volta ali mesmo.

O inicio, o que aconteceu naquele dia e na primeira semana fica para outra vez. Para dizer a verdade uma epopéia. Não era um pata-tenra. Já tivera uma experiência em uma construtora há dois anos atrás, que me colocou em situações interessantes para quem quer aprender a enfrentar a vida pelo seu lado mais difícil. O tempo passou e dois anos depois me casei.

Morava em uma cidade próxima, minha condução era um caminhão FENEME lonado. (Uma marca que deu início a grandes montadoras nacionais – FNM). Cem a cento e vinte homens embolados na carroceria, espremidos, alguns dormindo sobre os outros. Uma viagem de quase duas horas para ir e outro tanto para voltar. Com mais 8 de trabalho, não era nada fácil enfrentar aqueles horários curtos e longos. Turno de 8 as 16, de 16 as 24 e de 24 às 08 horas.

Há tempos notava que o corpo de vigilantes da usina não era de brincadeira. Eram ali mais de 16 mil operários (a maioria peões de obra). Falava-se na “Radio Pião” que existia na sala deles, um porão onde ensinavam os funcionários mais indisciplinados a cumprir suas ordens. Diziam ainda que muitas mortes ali aconteciam. Claro, a “Radio Pião” era nosso único contato dos segredos que se passavam na alta cúpula da Usina.

Não dava muito crédito, pois sempre fui uma pessoa cumpridora dos meus deveres e nunca tive qualquer altercação com eles. Talvez minha disciplina tenha pecado pelo meu futuro lá. Mas isto é outra história.

Um dia, ao chegar ao portão 4 para trabalhar, vi uma imensidão de peões, funcionários todos aglomerado (mais de 3.000), se revoltando, incentivando ninguém a entrar. Próximo, tinha um almoxarifado aberto, onde se colocava toda espécie de mercadorias para a construção da usina. Na hora não sabia o motivo. Mas depois vi que era uma revolta geral, pelos maus tratos do corpo de vigilantes da Usina.

Com medo, os vigilantes e a diretoria da usina pediram reforço policial. Naquela época eram poucos. Um caminhão sem lona chegou com uns 20, e o pior, em cima da carroceria um policial com uma metralhadora ponto 30 pronta para atirar. Quem conhece sabe como é. Fiquei muito preocupado. Tinha servido o exército e sabia do estrago que ela poderia fazer. Vi que ele tremia e era uma questão de horas para puxar o gatilho.

Durante umas duas horas só se ouvia gritos dos peões. Começaram a chingar os soldados, os vigilantes, e alguns querendo mais, resolveram jogar pedra nos policiais. Ninguém da Usina apareceu para dialogar. Reforços eu sabia que não tinha, pois naquela época o numero de policiais era pequeno.

Olhe, foi à conta. O que eu temia aconteceu. O policial que manejava a metralhadora abriu fogo. Foi um desespero. Uma multidão como o estouro de uma boiada. Larguei minha bicicleta comprada com tanta dificuldade e me escondi atrás de uma grande caixa de madeira. Ali fiquei tremendo e vi que alguns peões escondidos atiravam nos policiais. Depois, da bicicleta não vi nem sinal.

Uma hora de tiros e acabou a bagunça. Vi muitos peões deitados, mortos ou feridos não sei. Minha bicicleta nova, comprada em cinco prestações tinha sumido. Nesta hora minha preocupação era voltar a minha casa. Não tinha idéia do que estava acontecendo lá. Graças a Deus que não havia nada e ninguém nem sabia do ocorrido.

Foram três dias de distúrbios. Chegaram mais policiais das cidades vizinhas. Um quebra quebra generalizado. Cansados, os peões incitadores foram para suas casas. Eu fiquei em casa todo o tempo. Só voltei quando soube que todos os vigilantes foram demitidos e a guarda extinta. Um carro de som convocava todos para o retorno ao trabalho.  

Disseram depois que só oito peões tinham morrido. Não acredito. Vi com meus olhos mais de cem pessoas sangrando e gemendo, outro tanto sem movimento nenhum. Mas como não tínhamos a presença da imprensa e nenhuma emissora existia ainda naquela época, ficou o dito pelo não dito.

Os dias foram passando, criaram uma nova guarda, com funcionários da usina, tentando melhores as relações entre um e outro. Era difícil. Mas conseguiram o intento durante uns nove meses. Eles estavam pagando bem para os funcionários que quisessem se transferir para o corpo de vigilantes (quase o triplo do que ganhava) e com muita hora extra. Era o que eu precisava. Noivo com casamento marcado nada melhor para mim. (hoje vejo que não adiantou muito)

Ali fiquei por bom tempo. Casei me mudei para mais perto da usina e um dia me demitiram. Era esperado. Uma empresa de consultoria tinha sido contratada e ao contrário do pensamento japonês, que achava que precisava de cinco para o trabalho de um. Bem ela não pensou assim.

Para encerrar aprendi que nem sempre os melhores amigos são confiáveis. Demitido só receberia de deixasse a residência da usina entre outras obrigações. Sem isto não seria indenizado. Procurei os amigos para me fazerem um empréstimo e conseguir me mudar. Todos ficaram com medo de partir e não voltar para pagá-los. Descobri então que os que não são meus amigos são os melhores amigos. Difícil de entender não?

O João “bunda” desculpe o termo, mas este era seu apelido, morava perto da minha casa, tinha uma longa cicatriz no pescoço, baixo, atarracado, casado com três filhos. Eu o conhecia muito pouco. Veio me procurar e ofereceu para ajudar. Perguntei por que ele confiava, ele disse você é um Escoteiro e eu sei que eles são honestos.

Ah! O João “bunda” (até hoje não sei o seu nome completo). Fiz questão de pagar centavo por centavo e ao aumentar com juros o empréstimo ele se recusou a receber. Quando parti com meus haveres e com minha esposa e o primeiro filho num velho Chevrolet, vi com tristeza que os demais amigos do peito e que estavam sempre na minha casa não apareceram só o João “bunda” foi se despedir com a família.

Fora um deles, dos demais amigos nunca tive notícias. Hã, esqueci, quando voltei para receber fui descoberto pelo grande amigo que não me ajudou e chorando me pediu uma quantia emprestada. Emprestei. Fiquei com pena. Nunca mais recebi.  

Saí dali, só voltei passando pela estação de trem ou carro próprio, olhando, recordando, lembrando quando cheguei, e vendo como está hoje aquela cidade e a Usina. De trezentos habitantes (só a cidade) hoje tem quase trezentos mil.

Tudo muda tudo que acontece em nossas vidas tem uma razão de ser. Guardo boas lembranças. Do caminhão lonado, da poeira, até dos amigos do passado estão firmes na lembrança. Amigos que nunca foram tão amigos. Gostaria de saber do João “Bunda”. Um homem que merece todas as recordações e que mesmo não sendo o meu maior amigo, superou a todos pela sua honestidade. Para ele eu tiro meu chapéu.


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