EM ALGUM LUGAR DO PASSADO

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Celia, 49 anos de felicidade. Não sei viver sem ela

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Ele era o meu pai


Ele era o meu pai

Não tivemos um relacionamento muito próximo. Talvez pela época, onde o respeito e a palavra senhor fazia parte do nosso vocabulário. Pequenos momentos talvez. Ele me contou diversos fatos de sua vida. Não muitos porque se fosse hoje eu queria saber muito mais.

Não foi um pai diferente dos outros e nem tampouco excepcional. Mas para mim foi aquele que admirei e admiro até hoje. 

Quando pequeno, não sabia o que se passava não me preocupava com o dia, a semana, o ano. Ia à escola e depois era só brincar.

Na minha casa morava eu, minhas duas irmãs, minha mãe. Achava que éramos uma família feliz apesar de pobre. De uma pequena cidade só lembro-me de uma casinha branca, próximo ao cemitério. Por dentro não lembro de nada.

De outra cidade, lembro da casa, de madeira, fundos para o rio e embaixo em um porão com piso de terra, alguns pobres aproveitavam a seca do rio para ali morarem. Quando chovia o rio invadia tudo. Também éramos muito pobres, pois em volta de uma pequena mesa, sentávamos em caixotes para as refeições.

Graças a Deus que nunca passamos fome. Dificuldades sim. Elas existiam e eu pequeno não tomava conhecimento. O café da manhã, o almoço e o jantar sempre existiram.

Meu pai nesta época era Seleiro, aquele que fazia selas para cavalos e outros apetrechos afins.  Eu pequeno, 10 para 11 anos não ajudava a não ser aos sábados e domingo. Nestes dias ajudava a engraxar os sapatos de vários clientes do meu pai. Tornei-me um excelente engraxate.

Lembro do Grupo Escolar, do colégio, mas não me lembro de meu pai em momento algum me chamando a atenção ou brigando comigo. Era calmo e ponderado. Nunca em tempo algum me encostou a mão e por muito poucas vezes falou mais alto.

O tempo passou e ele um dia pegou uma mala e foi embora. O motivo não fiquei sabendo. Por um tempo ficamos ali até que conseguimos ir para outra cidade onde moravam alguns parentes que nos ajudaram.

Não lembro se senti falta dele, pois em poucos meses minha mãe foi ao encontro dele em outra cidade e me levou. O que conversaram não sei. Mas lembro da bicicleta que ele tinha e eu me esbaldei nela, caindo, montando e aprendi finalmente a andar sem problemas. Desta não esqueço nunca.

Ele voltou conosco para a nova cidade. Já havíamos alugado um barracão próximo à linha férrea. Minhas irmãs sempre foram um baluarte. Ambas estavam trabalhando e não queriam de forma alguma morar de favor. Depois, com muito sacrifício compraram um terreno e construíram um barracão em um bairro na periferia da cidade. Nele tinha o meu quarto próprio.

Eu gostava de morar ali. Apesar de não ter ainda água encanada da rua, havia uma cisterna com uma bomba manual. Todos que tomavam banho teriam que usar a bomba por mais de 100 vezes. Assim, mantínhamos a caixa cheia e o serviço feito por todos. 

Meu pai alugou um salão próximo ao centro. Ali montou uma oficina de rádio. Tinha estudado por correspondência e já era um perito no assunto. Achava que meu pai era muito inteligente. Tentei fazer o mesmo curso, mas não deu certo. Talvez porque não era bom aluno ou quem sabe não era o que queria fazer. Após as aulas ia trabalhar com ele e ver se aprendia alguma coisa na prática.

Ele me deixava ficar com a quantia dos serviços que realizava. Muito poucos por sinal, mas dava para ir ao um cinema, acampar e namorar.   

Nesta época já trocávamos idéias e ele com sua sapiência me mostrava algumas diretrizes da vida. Conversamos pouco. Foi ali que alguns fatos de sua vida me foram relatados, com parcimônia é claro.

Uma de quando moramos em uma fazenda de um tio meu, eu ainda com 3 para 4 anos, (não me lembro de nada a não ser da casa, pois posteriormente passei algumas férias lá) e o que ele fazia nunca soube.

Contou que tinha um conhecido de um arraial próximo e que eles sempre trocavam idéias e comentavam assuntos como dois bons amigos fazem. Um dia, conversado embaixo de uma goiabeira, próximo a nossa casa, chegou um homem a cavalo, não cumprimentou ninguém e sem apear sacou de um revolver e deu 4 tiros no amigo do meu pai. Ele disse que se assustou, mas o outro disse que era para ele se acalmar, pois recebera ordens para matar só o pretendido.

Colocou o revolver na cintura e partiu com a maior calma do mundo como se nada tivesse acontecido. Não ficou sabendo depois qual o motivo, nada. As bocas pequenas disseram que o defunto gostava de cantar as mulheres da vila. O delegado veio conversou providenciou a retirada do morto e o assunto morreu.

Uma vez comentou comigo sobre a revolução de 32 (constitucionalista). Ele jovem ainda se alistou. No inicio tudo era festa para ele e seu amigo um tal de Sebastião Barrigada. Andaram por aqui, por ali, até que foram levados de caminhão a uma pequena cidade já dentro do território paulista.

No primeiro confronto, foi só correria. Os paulistas inventaram uma matraca que imitava perfeitamente o pipocar de uma metralhadora ponto 30. Quando começou o barulho foi um Deus nos acuda. Depois virou rotina, ninguém mais tinha medo, pois já sabiam o que era.

Estavam em uma tarde em uma trincheira, deitados e o matraquear das metralhadoras pipocavam ali e lá. Seu amigo ficou em pé e começou a chingar os paulistas e rindo dizendo que com a mineirada eles não eram de nada. Meu pai gritou para o Bastião deitar. Ele não obedeceu. Achava que era mais uma piada dos paulistas.

Em dado momento o Bastião deitou de vez. Meu pai disse para ele, você deita ou não deita? E olhando viu que ele tinha um grande buraco na testa e do outro lado pedaços de seu miolo jaziam por todo o lado. Foi de estarrecer ele disse.

Não contou mais de sua luta, da sua militância política da revolução enfim de muitas outras coisas que eu gostaria de saber.  Sabia que ele gostava do partido da UDN e odiava o PSD. Porque não sei.    

O tempo passou. Ele ficou doente, quase morreu. Minhas irmãs o levaram para a capital. Lá achavam que ele teria melhores chances. Depois ficamos sabendo que era diabete. Pouco conhecida na época.

Muitos anos depois, morando na mesma cidade, aos domingos me dirigia a casa dele, passava lá o dia inteiro, mas conversávamos pouco. Acho que não havia assuntos, mas quanta coisa poderia ter sabido se tivesse perguntado.

Sua vida foi sem sobressaltos. Doente, andava aqui e ali fazendo pequenas caminhadas. O que sentia não perguntei. Devia ter perguntado. Ele nada dizia.

Morreu em uma semana qualquer. Fui ao enterro e chorei. Pensava no meu pai ali e não sabia o que ia acontecer com ele. Hoje, espírita que sou acho que ele não deve ter tido dificuldades para alcançar um lugar melhor para ficar. Mas cada cabeça uma sentença. Não sabemos de nada e qualquer um de nós pode sofrer conseqüências de atos anteriores com dividas mal pagas.

Senti falta do meu pai. Hoje com quatro filhos e muitos netos, me pergunto porque não ficamos mais próximos. Ele era assim e eu também. Ainda sou meio taciturno com os meus filhos. Herança? Não sei. Quero me aproximar e não consigo.

O mundo é assim. O livre arbítrio nos faz escolher caminhos que nem sempre são aqueles que deviam ser escolhidos. Faz parte do nosso crescimento.

Um dia vou me encontrar com ele. As perguntas que não fiz a farei. Se as respostas forem a que espero ótimo se não forem paciência.

Este era o meu pai. Um homem calado, bondoso, amigo que me deixou fazer o que queria. Nunca em tempo algum me fez qualquer admoestação.

Que ele seja feliz onde quer que esteja e que na sua próxima encarnação encontre felicidade que merece.

Um comentário:

  1. A tempos não me emocionava assim. Chefe, seu relato ´e nada menos que divino. só dá para dizer parabens. Seu Pai com certeza onde etá, tem um baita orgulhoso no homem maravilhoso e correto que o senhor se tornou.

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