É apanhando que se aprende?
A vida que levamos e imprevisível. Cada dia é um dia e se olharmos bem nenhum é igual ao outro. Tudo pode acontecer e não temos a mínima idéia do minuto seguinte. Estes pequenos relatos são fatos que com o passar do tempo me serviram como experiência para que no futuro pudesse quem sabe mudar o meu destino. Seria possível?
Fazia um ano que a revolução de 64 tinha acontecido. Eu não via nenhuma mudança. Não acompanhava os quebra quebras, as guerrilhas, os roubos a banco as ideologias e ouvia de boca pequena que as prisões estavam abarrotadas e que a tortura estava matando. Eu não sabia de nada. Não tinha tempo de me envolver.
Quando trabalhava na siderúrgica tive um amigo que se envolveu com o sindicato local. Após a revolução de 64 ele foi preso. Procuraram-me também, pois disseram que eu era comunista. Nosso Grupo Escoteiro tinha um lenço vermelho. Não me encontraram. Estava a passeio em outra cidade. Mas meu amigo foi preso e apanhou muito. Chegaram a arrancar duas unhas da mão e uma do pé com um alicate para ele confessar. Confessar o que? São coisas que ficaram no esquecimento. Quatro anos depois morreu esmagado em um carrinho na Rio - Bahia.
Morava em um pequeno barracão de dois cômodos junto a minha família, e com mulher e filho não tinha tempo para estas coisas de idealismo de mudar os destinos do país. A minha preocupação era só uma, arrumar um emprego. Não podia continuar desempregado. Com menos de um ano de casado, me demitiram de uma empresa siderúrgica. Os motivos estão em outra historia aqui neste blog.
Saia de manhã, enfrentava filas, tentava fazer alguma entrevista, mas as dificuldades eram grandes. Poucas vezes tive a sorte de chegar até ao entrevistador. Mesmo levantando às 3 da manhã, nada conseguia. Estava a cada dia mais preocupado. Claro, minha família me ajudava, nada faltava a mim, minha mulher e filho. Mas nunca fui um parasita e era questão de honra conseguir um emprego.
Os dias foram passando e nada. Só via batalhões do exercito correndo atrás de pessoas no centro da cidade, a cavalaria pisoteando e eu quase entrei de gaiato em uma. Como tinha aprendido a lição não era ali que voltaria a acontecer.
Explico melhor, em épocas passadas voltava para minha casa à noite, após um namoro com minha atual esposa, vi uma multidão correndo. Era um estouro de pessoas. Corri com minha bicicleta atrás de um gradil de uma árvore plantada e ali fiquei.
Tentava passar despercebido, mas fui surpreendido por um policial militar. Ele com uma pequena tabua me deu uma tremenda lambada no traseiro. Como doeu. Na hora não vi o policial. Achei que podia ser outra pessoa. Revidei. Apliquei um enorme soco em seu nariz e o sangue brotou aos borbotões. Foi um inferno, três ou quatro me pegaram de jeito e só não deram um corretivo maior (mesmo assim apanhei bastante) na hora porque me conheciam. Era já um pioneiro e tinha muitas amizades. Mesmo assim me trancafiaram e só lá pela madrugada meu Chefe de Grupo apareceu (era militar) e me soltou.
Mas isto é outra historia. O que aconteceu depois quando lembro dou belas gargalhadas. Vamos voltar a historia inicial. Não conseguia encontrar um emprego. Não tinha “pistolões”, não conhecia nenhuma alta autoridade. Só mesmo a sola do meu sapato, que já estava ficando gasta. Bendito o Vulcabrás valente. Você comprava um e ficava enjoado dele por anos.
Um dia li em um jornal que uma grande Usina de pellets (minério de ferro) estava sendo construída na capital de um estado brasileiro junto ao porto local. Como minha sogra morava na cidade em epígrafe, não pensei duas vezes. Deixei a esposa e o filho na casa de meus pais e parti cheio de esperanças.
24 horas viajando em um trem pelo Vale do Rio Doce. Sempre uma viagem adorável, mas já bastante rotineira. Cheguei à noitinha. Minha sogra me esperava. (tinha passado um telegrama, muito usado na época). Ela era uma excelente pessoa. (até hoje é) Prestativa e não media esforços para ajudar.
No terceiro dia, fui sondar o local da usina. Assustei-me. Vi na entrada (era somente uma cerca de arame farpado que ia de oeste a este até sumir de vista e com uma cancela tipo porteira de fazenda (não vi as construções) uma guarita, mais de 10 vigilantes e uma multidão incrível, Acho que para mais de três mil pessoas. Naquele dia vi que ali nunca conseguiria entrar. Era bem próximo do mar. Uma linda praia ficava a direita da estrada. Hoje ali tem enormes prédios e a praia é uma das melhores da cidade.
Minha sogra foi até um Vereador do bairro falou sobre meu assunto e ele entregou a ela uma carta com pedido de emprego (mimeografada inclusive com sua assinatura). Sem nenhum valor é claro, mas não disse nada para minha sogra. Isto acontecia muito com políticos de meia tigela. Não tinham contatos e faziam de tudo para aparecer.
No dia seguinte, peguei um caminhão que levava funcionários lá, levantei cedo, não era quatro horas da manhã. Ao sinalizar para o veículo acharam que eu também era funcionário e me deixaram subir na carroceria. Achei que o caminhão passaria direto pela portaria da entrada. Puro engano, ao chegar à cancela antes de abri-la, mandaram todos descer e apresentarem seus documentos de trabalho. Assim como eu, pelo menos mais quatro lá estavam. Desci sem graça e foi aquela vaia. Plano 1, fracassado. Risos
Tive que esperar os caminhões de retorno lá pelas 18 horas. A casa de minha sogra era longe e pegar ônibus estava fora de cogitação. Não tinha dinheiro. Fiquei ali próximo aquela multidão sem almoço e sem água. Dinheiro curto não podia comprar nada.
Não desisti. Nunca desisto facilmente. Voltei lá outras vezes, mas só para traçar um plano e entrar na empreiteira e assim tentar com alguém conseguir alguma coisa. Do jeito que via nunca seria admitido. Uma vez por dia aparecia um vigilante que devia ser o chefão e escolhia um ou dois e entrava com ele. No mais naquele portão só via um ou outro levando uma surra dos vigilantes. Eles gostavam de bater.
No dia do plano 2, levantei cedo, entrei em um caminhão e antes de parar na cancela, desci rápido, e voltei uns 300 metros na estrada. Já tinha traçado um plano. Iria subir o morro uns dois km, depois entrar a NNE (era escoteiro e sabia como). Mais uns 400 metros e encontraria a cerca. Depois atravessá-la e tentar avistar os galpões da empreiteira. Daí, só a sorte diria o que iria acontecer.
Assim fiz, logo ao atravessar a cerca, avistei a uns 700 metros os barracões. Sorri, meu plano estava dando certo. Agora era saber a pessoa certa para conversar e pedir o emprego. De repente, sem esperar levei um chute no traseiro. Logo foi pancada por todo o corpo. Como apanhei. Fui encontrado por três vigilantes. Eles conheciam a “mutreta”. Apanhei tanto que fiquei desfalecido.
Fui levado para o ambulatório e dando entrada, um encarregado de manutenção me viu e achou um absurdo tudo que estava acontecendo. Eles, os vigilantes me arrastavam na terra, todo ensangüentado. Chamou a atenção de todos e procurou o setor competente. Lá disseram a ele que se não dessem um corretivo, haveria centenas tentando atravessar a cerca. Ele sabia quantos permaneciam lá na cancela e não falou mais nada.
Logo me fizeram vários curativos, fui seguro por um deles e já podendo andar mesmo com dificuldades me arrastaram em direção a cancela. Meu corpo doía horrivelmente. Tinha receio de como ia chegar em casa.
Como em tudo existe sempre um final feliz, meu anjo da guarda apareceu. Era uma Doutora (assim todos a chamavam) e me vendo naquele estado me levou até seu escritório. Perguntou-me o porquê de tudo. Expliquei. Precisava trabalhar. Ela me disse que no outro dia se estivesse bom, que fosse até o asfalto (morava um pouco afastado dele) e lá pelas sete horas e trinta minutos ela passaria pelo local e iria me trazer e aplicar um teste. Ia depender de mim passar ou não. Sorri com a boca torta e inchada.
E assim fui admitido, mais uma empresa em meu currículo. Gostava de lá. A Doutora sabia reconhecer o meu trabalho. Comecei como assistente do departamento que ela dirigia e terminei como Gerente de Segurança. Um paradoxo. Os vigilantes que me espancaram eram meus funcionários. Pelo menos nunca mais espancaram ninguém. Eu não tinha pena. Que batia era demitido na hora.
Dois meses após, minha esposa chegou com meu filho. Família reunida novamente. Não esqueço aquele dia, estação apinhada de gente, uns esperando e outros sem o que fazer iam ali para um “fut”, ou melhor, um passeio.
O trem deu entrada na estação, era noitinha. Quando parou eu e minha sogra procurávamos os dois. E eis que apareceu minha esposa com meu filho, um ano de idade, com seus cabelos loiros destoava de tudo e de todos que estavam ali. Sorria, que lindo sorriso! Era uma visão linda. Lagrimas apareceram em meus olhos. Nunca esqueci aquele dia.
Trabalhei lá por alguns anos, a empreiteira foi desativada. A usina ficou pronta. Não conseguí nesta uma vaga. Só mesmo com muitos “pistolões”. Vitória não dava condições de emprego em outros lugares. Poucas fábricas. Ficar lá não adiantava. Um mês depois parti de volta a Belo Horizonte. O trem corria ao lado do rio Doce. Meus pensamentos estavam longe Dalí.
E a vida continua, amanhã tem mais, pois o amanhã nunca morre.
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