Conversa ao pé do fogo.
Eu já fui professor primário.
Foi uma
experiência fantástica. Ser professor e ver alunos querendo aprender é uma
situação agradabilíssima. Agora fui professor, mas de pessoas humildes, quase
todos acima de vinte anos e muitos de cinquenta a oitenta anos. Pode? Acho que
poucos se lembram do programa governamental de formação de adultos. Na época
era chamado de MOBRAL (Movimento
Brasileiro de Alfabetização) foi um projeto do governo brasileiro,
criado pela Lei n° 5.379, de 15 de
dezembro de 1967, e propunha a alfabetização funcional
de jovens e adultos, visando "conduzir a pessoa humana a adquirir
técnicas de leitura, escrita e cálculo como meio de integrá-la a sua
comunidade, permitindo melhores condições de vida".
Criado e mantido pelo regime militar, durante
anos, jovens e adultos frequentaram as aulas do MOBRAL, cujo objetivo era proporcionar
alfabetização e letramento a pessoas acima da idade escolar
convencional. A recessão econômica iniciada nos anos 80 inviabilizou a continuidade do MOBRAL,
que demandava altos recursos para se manter. Seus Programas foram assim
incorporados pela Fundação Educar em 1985, ano de seu fim.
Sim, isto mesmo, um professor do MOBRAL. Se nas grandes cidades servia-se
de pilherias e zombarias por aqueles que eram contra os militares, onde eu
estava era uma fonte da juventude para aqueles que queriam pelo menos adquirir
uma noção de assinar seu nome, quem sabe ler um pouco e escrever uma carta aos
seus que moravam longe dali. Eu naquela época era gerente de uma Fazenda, lá
pelos lados do norte de minas e conhecia boa parte dos moradores, na maioria meeiros,
pequenos sitiantes que nas margens do Rio das Velhas resolveram construir seus
casebres e constituir família. Pessoas simples, sempre com um sorriso, sempre a
dizerem Senhor, e até hoje tenho o orgulho de ter feito grandes amigos ali, sem
contar que fui padrinho de dezenas de crianças cujos pais me honraram com um
convite.
Fazia quase dois anos que vivia uma vida incrivelmente bela, mas muitas
vezes calmas demais. Quando a noite chegava, o silencio tomava conta onde morávamos.
Havia luz sim, mas de um Velho “Jirico” que usávamos o motor e somente à noite
ligávamos ou não dependendo a necessidade. Como tinha uma geladeira a gás, uma
TV a bateria que só mostrava chuviscos, e três lampiões gás não precisava de
mais. Afinal tinha meu radinho à pilha para ouvir a Voz do Brasil ou um
programa noturno na Radio Nacional. Sentar na varanda, ver o sol se pondo, ter
a disposição um céu de estrelas incrivelmente belo valia toda a escuridão da
noite com seus grilos e sapos coaxantes na lagoa distante. Lembro que a noticia
do MOBRAL foi muito comentada na Voz do Brasil. Pensei com meus botões quem
sabe posso ter aqui na fazenda uma escola assim? Dito e feito, a ideia maturou
e coloquei mãos a obra. Não pedi licença ao Presidente da Companhia, um erro
meu, pois acreditava ser ele um nacionalista brasileiro e não seria contra a
ter uma escola em sua propriedade.
Comentei com os vaqueiros, disse que era a escola era aberta para quem
quisesse. Os que se interessassem deviam fazer uns banquinhos simples para
sentar e os deixariam no Galpão número dois para não dificultar levar e trazer.
Fui à cidade de Pirapora e na prefeitura local me informaram de tudo, até mesmo
uma ajuda de custo tinha, coisa de meio salário mínimo. O dinheiro foi usado
para comprar materiais para a escola. Deram-me material para começar para vinte
alunos. Chegou o grande dia. Às seis e meia começaram a chegar a cada canto da
fazenda. A cavalo, de charrete, de bicicleta e a pé. Casais, solteiros, até
filhos maiores. Assustei com o numero, não esperava tantos interessados. Na
primeira noite mais de quarenta, na segunda sessenta, na terceira chegamos a
oitenta. Fechei as inscrições. A prefeitura de Pirapora não me negou os
materiais faltantes.
Deram-me apostilas para usar e aprendi muito a ensinar pessoas mais
velhas. Foi divertido pegar nas mãos trôpegas de alunos que durante o dia
capinaram suas roças, fizeram seus trabalhos de campo, plantaram, colheram e ao
lusco fusco da noite partiam em busca do saber. Foram quatro meses
maravilhosos. Começávamos as sete e terminávamos às nove e meia. Dona Noêmia de
setenta anos me pagou com um lindo sorriso quando aprendeu a assinar o nome.
Para ela uma apoteose de uma vida analfabeta, que só assinava fazendo uma cruz
ou mergulhando seu dedo em uma tinta para fazer seu reconhecimento digital. Em
quatro meses não aprenderam o necessário. Faltava ainda pelo menos um ano para
ler e escrever. Havia sim, os mais adiantados. Muitos começaram a ler as
cartilhas, alguns já fazendo seus exercícios com a tabuada tão decorada. Contas
de somar e diminuir.
Recebi um recado do presidente da Companhia – Louvável Osvaldo seu
espirito em dar luz a estas pessoas, ensinando a ler e a escrever. No entanto
por motivos que irei comentar quando for ai, termine tudo. Feche a Escola. Tem
duas semanas para isto! – Levei um choque. Não espera dele tal atitude. Mudou
minha concepção de homem empreendedor. Os alunos não acreditavam quando disse que
a escola ia acabar. Houve choros, lágrimas e tristeza geral. Aos domingos minha
casa enchia de amigos alunos para conversar e reclamar da atitude do
presidente. Enfim, a escola acabou. Quando sai da fazenda dois anos depois,
mais de quarenta ex-alunos foram a minha casa para despedir. Eu era um Chefe
Escoteiro, sabia como tratar adultos e pais. Mas como professor nunca tive a
honra de ensinar o ABC. Foi demais, na partida lágrimas verteu dos meus olhos.
Elas só pararam quando atravessei a Barragem de Três Marias quatro horas
depois.
Não discuto e nem quero fazer uma celeuma das vantagens e desvantagens
do MOBRAL. Se for invenção de militares que assumiram o poder tudo bem, mas
olhar nos olhos de uma plêiade de pessoas sedentas em aprender, pessoas
simples, humildes que não tiveram a oportunidade de ser alfabetizados, eu dei e
daria sempre meus aplausos aos criadores de ilusões. Ilusões ou não, nunca
esqueci Dona Noêmia que me olhou e sorriu quando conseguiu assinar seu nome!
Velhos tempos, um Velho Escoteiro não esquece. Um Chefe sabe o valor de um
sorriso de um jovem e eu agora que fui um professor nunca esqueço um sorriso de
alguém que quer aprender o ABC acreditando que ou escreves algo que valha a pena ler, ou fazes algo acerca do
qual valha a pena escrever. Eu fiz e tenho grande orgulho de ter feito!
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