EM ALGUM LUGAR DO PASSADO

EM ALGUM LUGAR DO PASSADO
Celia, 49 anos de felicidade. Não sei viver sem ela

segunda-feira, 31 de agosto de 2015

Eu já fui professor primário.


Conversa ao pé do fogo.
Eu já fui professor primário.

                   Foi uma experiência fantástica. Ser professor e ver alunos querendo aprender é uma situação agradabilíssima. Agora fui professor, mas de pessoas humildes, quase todos acima de vinte anos e muitos de cinquenta a oitenta anos. Pode? Acho que poucos se lembram do programa governamental de formação de adultos. Na época era chamado de MOBRAL (Movimento Brasileiro de Alfabetização) foi um projeto do governo brasileiro, criado pela Lei n° 5.379, de 15 de dezembro de 1967, e propunha a alfabetização funcional de jovens e adultos, visando "conduzir a pessoa humana a adquirir técnicas de leitura, escrita e cálculo como meio de integrá-la a sua comunidade, permitindo melhores condições de vida".
Criado e mantido pelo regime militar, durante anos, jovens e adultos frequentaram as aulas do MOBRAL, cujo objetivo era proporcionar alfabetização e letramento a pessoas acima da idade escolar convencional. A recessão econômica iniciada nos anos 80 inviabilizou a continuidade do MOBRAL, que demandava altos recursos para se manter. Seus Programas foram assim incorporados pela Fundação Educar em 1985, ano de seu fim.

                       Sim, isto mesmo, um professor do MOBRAL. Se nas grandes cidades servia-se de pilherias e zombarias por aqueles que eram contra os militares, onde eu estava era uma fonte da juventude para aqueles que queriam pelo menos adquirir uma noção de assinar seu nome, quem sabe ler um pouco e escrever uma carta aos seus que moravam longe dali. Eu naquela época era gerente de uma Fazenda, lá pelos lados do norte de minas e conhecia boa parte dos moradores, na maioria meeiros, pequenos sitiantes que nas margens do Rio das Velhas resolveram construir seus casebres e constituir família. Pessoas simples, sempre com um sorriso, sempre a dizerem Senhor, e até hoje tenho o orgulho de ter feito grandes amigos ali, sem contar que fui padrinho de dezenas de crianças cujos pais me honraram com um convite.

                        Fazia quase dois anos que vivia uma vida incrivelmente bela, mas muitas vezes calmas demais. Quando a noite chegava, o silencio tomava conta onde morávamos. Havia luz sim, mas de um Velho “Jirico” que usávamos o motor e somente à noite ligávamos ou não dependendo a necessidade. Como tinha uma geladeira a gás, uma TV a bateria que só mostrava chuviscos, e três lampiões gás não precisava de mais. Afinal tinha meu radinho à pilha para ouvir a Voz do Brasil ou um programa noturno na Radio Nacional. Sentar na varanda, ver o sol se pondo, ter a disposição um céu de estrelas incrivelmente belo valia toda a escuridão da noite com seus grilos e sapos coaxantes na lagoa distante. Lembro que a noticia do MOBRAL foi muito comentada na Voz do Brasil. Pensei com meus botões quem sabe posso ter aqui na fazenda uma escola assim? Dito e feito, a ideia maturou e coloquei mãos a obra. Não pedi licença ao Presidente da Companhia, um erro meu, pois acreditava ser ele um nacionalista brasileiro e não seria contra a ter uma escola em sua propriedade.

                       Comentei com os vaqueiros, disse que era a escola era aberta para quem quisesse. Os que se interessassem deviam fazer uns banquinhos simples para sentar e os deixariam no Galpão número dois para não dificultar levar e trazer. Fui à cidade de Pirapora e na prefeitura local me informaram de tudo, até mesmo uma ajuda de custo tinha, coisa de meio salário mínimo. O dinheiro foi usado para comprar materiais para a escola. Deram-me material para começar para vinte alunos. Chegou o grande dia. Às seis e meia começaram a chegar a cada canto da fazenda. A cavalo, de charrete, de bicicleta e a pé. Casais, solteiros, até filhos maiores. Assustei com o numero, não esperava tantos interessados. Na primeira noite mais de quarenta, na segunda sessenta, na terceira chegamos a oitenta. Fechei as inscrições. A prefeitura de Pirapora não me negou os materiais faltantes.

                     Deram-me apostilas para usar e aprendi muito a ensinar pessoas mais velhas. Foi divertido pegar nas mãos trôpegas de alunos que durante o dia capinaram suas roças, fizeram seus trabalhos de campo, plantaram, colheram e ao lusco fusco da noite partiam em busca do saber. Foram quatro meses maravilhosos. Começávamos as sete e terminávamos às nove e meia. Dona Noêmia de setenta anos me pagou com um lindo sorriso quando aprendeu a assinar o nome. Para ela uma apoteose de uma vida analfabeta, que só assinava fazendo uma cruz ou mergulhando seu dedo em uma tinta para fazer seu reconhecimento digital. Em quatro meses não aprenderam o necessário. Faltava ainda pelo menos um ano para ler e escrever. Havia sim, os mais adiantados. Muitos começaram a ler as cartilhas, alguns já fazendo seus exercícios com a tabuada tão decorada. Contas de somar e diminuir.

                  Recebi um recado do presidente da Companhia – Louvável Osvaldo seu espirito em dar luz a estas pessoas, ensinando a ler e a escrever. No entanto por motivos que irei comentar quando for ai, termine tudo. Feche a Escola. Tem duas semanas para isto! – Levei um choque. Não espera dele tal atitude. Mudou minha concepção de homem empreendedor. Os alunos não acreditavam quando disse que a escola ia acabar. Houve choros, lágrimas e tristeza geral. Aos domingos minha casa enchia de amigos alunos para conversar e reclamar da atitude do presidente. Enfim, a escola acabou. Quando sai da fazenda dois anos depois, mais de quarenta ex-alunos foram a minha casa para despedir. Eu era um Chefe Escoteiro, sabia como tratar adultos e pais. Mas como professor nunca tive a honra de ensinar o ABC. Foi demais, na partida lágrimas verteu dos meus olhos. Elas só pararam quando atravessei a Barragem de Três Marias quatro horas depois.


                        Não discuto e nem quero fazer uma celeuma das vantagens e desvantagens do MOBRAL. Se for invenção de militares que assumiram o poder tudo bem, mas olhar nos olhos de uma plêiade de pessoas sedentas em aprender, pessoas simples, humildes que não tiveram a oportunidade de ser alfabetizados, eu dei e daria sempre meus aplausos aos criadores de ilusões. Ilusões ou não, nunca esqueci Dona Noêmia que me olhou e sorriu quando conseguiu assinar seu nome! Velhos tempos, um Velho Escoteiro não esquece. Um Chefe sabe o valor de um sorriso de um jovem e eu agora que fui um professor nunca esqueço um sorriso de alguém que quer aprender o ABC acreditando que ou escreves algo que valha a pena ler, ou fazes algo acerca do qual valha a pena escrever. Eu fiz e tenho grande orgulho de ter feito!

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