EM ALGUM LUGAR DO PASSADO

EM ALGUM LUGAR DO PASSADO
Celia, 49 anos de felicidade. Não sei viver sem ela

domingo, 22 de março de 2015

Em algum lugar do meu passado.



Em algum lugar do meu passado.

Tempos de desemprego, a procura de um lugar ao sol, uma pequena aventura em uma Usina Siderúrgica que me serviu como um aprendizado para a vida.

                 Não dá para esquecer, depois de meses a procura de um emprego arrumei um. Deram-me uma passagem e cinquenta reais para chegar lá e viver os primeiros trinta dias antes do primeiro pagamento. A viagem de trem foi simples. Desci na Estação da Usiminas e na plataforma com minha mala de lado e uma blusa amarrada ao pescoço olhei em volta. O trem que me trouxera já partira e poucas pessoas ainda se encontravam ali. Acredito que só funcionários e alguns transeuntes. Eu não esperava ninguém. Pensei qual o rumo a tomar. Corria o ano de 1961. Pela saída do prédio da estação e pelas laterais, via uma estrada bem movimentada sem asfalto e cada veículo que passava deixava uma nuvem de poeira.  Atrás da estrada só o verde amarelado dos morros e nada mais podia avistar além deles. Não havia casas, prédios ou algum similar. Só a estação. Um calor de 35’ graus ajudava há melhorar o dia.

                 Virando para o outro lado, uma visão fantástica. Muito movimento, prédios, galpões, pessoas indo e vindo, carros em grandes avenidas asfaltadas, locomotivas pequenas indo para lá e para cá. Uma cerca corria paralela até onde se podia enxergar. Uns quatrocentos metros à frente, uma portaria cuja identificação não pude fazer na hora. Era o maior complexo siderúrgico que tinha visto. Trabalhar ali seria um grande desafio. Do nada que conheci no passado, pois ali era criação de gado agora surgia uma das maiores usinas siderurgicas do Brasil estava surgindo do nada. Diziam que seria a maior produtora de chapas de aço do mundo e outros produtos importantes. Desempregado e agora empregado. Na capital do estado a vida do desempregado não era nada fácil. Morava com meus pais e duas irmãs que trabalhavam. Eu não queria ser um peso morto. A única oportunidade deu em nada. Vendas no interior. Viajei por algumas cidades. Quase fui morto por causa de um colega. Demiti-me. Um verdadeiro fracasso em termos de emprego.

                   Por um jornal vi que um escritório local estava admitindo jovens para trabalhar no interior, em uma usina siderúrgica e eu me enquadrava na solicitação. Fui aceito, me deram uma quantia em dinheiro (muito pouco) e disseram que eu tinha de apresentar em quarenta e oito horas na usina. Mal tive tempo de preparar minha tralha e partir na mesma noite de trem. E ali estava eu. No meio do nada, perdido sem saber aonde ir. Tomei iniciativa e perguntando fiquei sabendo para onde me dirigir. Coloquei minha mala nas costas, enfrentei a estrada poeirenta por 3 quilômetros e encontrei o tal escritório Central. Um prédio de madeira perdido no meio do nada. Bem diferente do que se vê hoje. A pujança do concreto e o surgimento de uma cidade de mais de duzentos e oitenta mil habitantes. Ninguém sabia que em Ipatinga antiga estação o arraial não passava de mil ou dois mil moradores. Bem agora era enfrentar o meu destino. Apresentei os documentos me “ficharam” e deram o endereço onde ia morar e o setor onde deveria me apresentar no dia seguinte. Recebi também uns tíquetes para refeições.

                     Vi-me de novo a pé, na beira da estrada, a poeira fazendo uso de sua valentia. Por informação onde devia ir, era mais de 6 quilômetros. Não havia ainda ônibus. Explicou-me que os alojamentos ficavam proximo ao bairro Carandiru, e lá só moravam os privilegiados do poder na usina. Andei mais seis quilômetros na poeira dos sonhos. Assim a apelidei, pois se tornou minha amiga ali naquele mundo perdido de Deus. O vigilante responsável me conduziu a um quarto de madeira, com três beliches. Se eu não fosse um Escoteiro teria dado a volta e esquecido daquele emprego. O inicio, o que aconteceu naquele dia e na primeira semana fica para outra vez. Para dizer a verdade uma epopéia. Não era um novato. Já tivera uma experiência em uma construtora dois anos atrás, que me colocou em situações interessantes para quem quer aprender a enfrentar a vida pelo seu lado mais difícil.

               O tempo passou e dois anos depois me casei. Morava em um arraial proximo a cidade de Coronel Fabriciano. Minha condução era um caminhão FENEME lonado. (Uma marca que deu início a grandes montadoras nacionais – FNM). Cem a cento e vinte homens embolados na carroceria, espremidos, alguns dormindo sobre os outros. Uma viagem de quase duas horas para ir e outro tanto para voltar. Com mais oito de trabalho, não era nada fácil enfrentar aqueles horários curtos e longos. Turno de 8 as 16, de 16 as 24 e de 24 às 08 horas. Há tempos notava que o corpo de vigilantes da usina não era de brincadeira. Trabalhavam ali mais de dezoito mil operários (a maioria peões de obra). Falava-se na “Radio Pião” que existia na sala deles, um porão onde ensinavam os funcionários mais indisciplinados a cumprir suas ordens. Diziam ainda que muitas mortes ali aconteciam. Claro, a “Radio Pião” era nosso único contato dos segredos que se passavam na alta cúpula da Usina.

                    Não dava muito crédito, pois sempre fui uma pessoa cumpridora dos meus deveres e nunca tive qualquer altercação com eles. Talvez minha disciplina tenha pecado pelo meu futuro lá. Mas isto é outra história. Um dia, ao chegar ao portão 4 para trabalhar, vi uma imensidão de peões, funcionários aglomerados na entrada e gritos de ordem mostrava que uma revolta estava para acontecer. Ninguém podia entrar ou sair. Na entrada um almoxarifado enorme espalhava caixas e caixas de materiais importados para a construção da Usina. Não entendi a principio, mas depois vi que era uma revolta geral, pelos maus tratos do corpo de vigilantes da Usina. Com medo, os vigilantes e a diretoria da usina pediram reforço policial. Naquela época eram poucos. Um caminhão sem lona chegou com uns vinte policiais. Em cima da carroceria avistei uma metralhadora ponto 30 armada. Eu conhecia quando servi o exército. Quem conhece sabe como é. Fiquei muito preocupado. Eu sabia do estrago que ela poderia fazer. Vi que o policial tremia de medo e era uma questão de horas para puxar o gatilho.

                       Durante umas duas horas a turba engrossou. Os piões gritavam. Pedras eram jogadas. Muitos falavam palavrões aos soldados e os vigilantes. Não apareceu nenhum diretor ou autoridade para dialogar. Reforços eu sabia que não tinha, pois naquela época o numero de policiais era pequeno. Olhe, foi à conta. O que eu temia aconteceu. O policial que manejava a metralhadora abriu fogo. Foi um desespero. Uma multidão corria como o estouro de uma boiada. Larguei minha bicicleta comprada com tanta dificuldade e me escondi atrás de uma grande caixa de madeira. Ali fiquei tremendo e vi que alguns peões escondidos atiravam nos policiais. Depois do tumulto nem sinal da minha bicicleta. Uma hora de tiros e acabou a bagunça. Vi mais de oitenta peões ensanguentados, alguns deitados outros em pé muitos mortos ou feridos. Estava assustado. Minha bicicleta nova, comprada em cinco prestações eu perdi. Não sabia se entre os mortos tinha amigos meus. Nesta hora minha preocupação era voltar a minha casa. Não tinha idéia do que estava acontecendo. Voltei a pé, pois nem caminhões de transporte existiam naquela hora.

                      Foram três dias de distúrbios. Chegaram mais policiais das cidades vizinhas. Um trem lotado chegou no segundo dia vindo de Governador Valadares onde havia o Sexto Batalhão da Policia Militar. O quebra-quebra foi sessando. Cansados, os peões incitadores foram para suas casas. Eu fiquei em casa todo o tempo. Só voltei quando soube que todos os vigilantes foram demitidos e a guarda extinta. Um carro de som convocava todos para o retorno ao trabalho. Disseram depois que só oito peões tinham morrido. Não acreditei. Vi com meus olhos mais de cem pessoas sangrando e gemendo, outro tanto sem movimento nenhum. Mas como não tínhamos a presença da imprensa e nenhuma emissora existia ainda naquela época, ficou o dito pelo não dito.

                      Dizem que há males que vem para o bem. Criaram uma nova guarda com funcionários da usina, curso ginasial e assim foram tentando melhores as relações entre um e outro. Era difícil. Mas conseguiram o intento nos próximos nove meses. Soube que pagavam bem a quem se interessasse ser da guarda da usina por um período. Pedi ao meu Chefe uma transferência e ele aprovou. Acho que tinha ordens para não dificultar. Fazia horas extras a vontade. Era o que eu precisava. Noivo com casamento marcado nada melhor para poder comprar meus móveis e um terno. Ali fiquei por bom tempo. Casei me mudei para mais perto da usina e um dia me demitiram. Era esperado. Uma empresa de consultoria tinha sido contratada e ao contrário do pensamento japonês, que achava que precisava de cinco para o trabalho de um. Bem ela não pensou assim.


                    Um dia conto a minha saga da demissão da Usina. Foi realmente uma luta que nunca mais esqueci. Sei que lá deixei bons amigos e um homem ficou gravado em meu coração pela sua bondade e foi o único que me deu a mão na hora difícil. Anos depois dos amigos nunca tive notícias. Fui embora com o coração partido. Eu amava meu emprego. Fiquei quase quatro anos lá. Hoje quando passo de trem por lá me recordo de tudo. Tudo muda tudo que acontece em nossas vidas tem uma razão de ser. Guardo boas lembranças. Do caminhão lonado, da poeira, até dos amigos do passado estão firmes na lembrança. Amigos que nunca foram tão amigos. Gostaria de saber do João “Bunda”. Um homem que merece todas as honras e recordações e que mesmo não sendo o meu maior amigo, superou a todos pela sua honestidade. Para ele eu tiro meu chapéu.

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