As flores lindas da primavera voltaram.
(Baseado em
fatos reais).
Lembranças nem sempre nos trazem
o perfume das flores singelas que desabrocham na primavera. O que acontece
conosco sabemos que nem sempre é um mar de rosas e as dificuldades acontecem
porque estão definidas em nossa vida. Estou a contar fatos que aconteceram, e
mesmo amargos na época, ainda nos trás uma pontinha de saudade. Vou voltar no
tempo. 1961/65. Eu era feliz. Recém-casado já com meu primeiro filho vivia no
corre, corre em cima de uma bicicleta que me levava de casa para o trabalho e o
escotismo. Trabalhava em turno. Usiminas. Grande siderúrgica. Milhares de peões
como eu. Um formigueiro humano de gente saindo e outros entrando. Eu gostava de
trabalhar ali. Nos meus vinte e três anos eu era muito feliz. Planos eram
poucos. Ter mais um ou dois filhos e ser feliz como sempre fui. Sempre gostei
de trabalhar. Fiz muitos amigos. Mesmo no horário de meia noite as oito da
manhã eu ainda sorria ao retornar para meu lar. Nunca lamentei. Não era rico,
mas dava para viver. Quando não tinha carne na mesa tinha peixe. Era só ir pescar
no Rio Piracicaba um rio pequeno, mas piscoso. Bem ao lado de minha casa.
Tantas coisas aconteceram ali.
A morte de dezenas de peões pelas autoridades policiais da época, fatos
escondidos na imprensa, tudo por que a Segurança da Usina se tornou uma KGB.
Outra história para contar no futuro. A vida não parava. Veio uma epidemia de
sarna, meus braços e pernas ficaram em carne viva. Em 1964 a gente via os
vários trens lotados de prisioneiros levados para Belo Horizonte no DOPS.
Quantos suplícios e covardia aconteceram com eles. Não era um estudante e nem um leitor assíduo
dos fatos, portanto não liguei muito pelo acontecido. Minha vida agora era
proteger minha família e trabalhar. Eu sonhava com um futuro, sonho simples.
Nada de riqueza e grandes conquistas. Era um homem feliz e trabalhando na “boca
do forno” nunca reclamei. Eu gostava dali, dos meus amigos e nas folgas quando
me encontrava com meus meninos Escoteiros. Nunca faltei e nunca cheguei
atrasado. Um dia soube que ela estava chegando. A Rádio Peão já tinha anunciado
em manchetes. A Temida Booz Allen Hamilton
iria dar seu veredito de quem fica e quem sai. Sua fama já era
conhecida no Brasil. Muitos tremiam quando viam seus engravatados espalhados
pela usina. Fora contratada para fazer uma reformulação de pessoal. O medo se
apossou de todos. Os idealizadores da Usina os japoneses do pós-guerra, diziam
que cada tarefa precisava de cinco brasileiros para executar. Era assim no Japão.
Os novos brasileiros na Diretoria achavam que não. Uma limpeza precisava ser
feita e reformulação chamada na época de Organizações e Métodos pretendia
demitir quarenta por cento dos funcionários. Dos onze mil pelo menos quatro mil
e quinhentos iam dar adeus ao seu emprego.
As rodinhas de funcionários
aqui e ali comentando. No meu setor cinco engravatados nos chamavam um a um. –
O que você faz? Para que serve? Quem é seu Chefe? E assim as perguntas
pipocavam. Um questionário temido. Quase duas horas respondendo engasgado e
tremendo. A gente que vivia feliz contando piadas no forno quente para passar o
tempo, agora vivia com um medo terrível. Quando eles os engravatados apareciam
no alto forno um silencio sepulcral. Agora não havia mais conversa a dois. Não
havia mais rodinha onde se comentava os fatos do dia. No refeitório ninguém olhava
para ninguém. Chegou a hora de cada um pensar si. Demissão? Trabalhar onde? Eu
mesmo sabia como foi chegar até ali. Começara tudo de novo? Onde? Eu tinha
mulher e filho para sustentar. Precisava trabalhar. Minhas noites agora eram mal
dormidas, pesadelos aconteciam. E então começaram as demissões tão anunciadas.
Meu Deus que covardia eles usaram para demitir. Todos desciam dos caminhões que
os levavam até seu setor de trabalho e uma fila se formava para bater o ponto.
– Quem não encontrasse o cartão de ponto na chapeira estava demitido. Na fila uma
tremedeira. Todos rezando para que seu cartão de ponto estivesse lá. Até hoje
fico pensando se eles se divertiram com esta maldade. Você mal dorme, pega um
caminhão lotado de peões chega ao trabalho por volta das onze e meia da noite e
entra em uma fila para descobrir que seu cartão não está lá?
Foram dois meses de agonia. O
Tião foi demitido. O Waltinho e o Nonô também. Até o Marquinhos que era Mestre
de forno também foi. A turma do meu departamento iam um atrás do outro. No
caminhão na ida e vinda ninguém falava. Soube que a CIPA (Comissão Interna de
Prevenção de Acidentes) levantou o problema para a diretoria. O número de
acidentes crescera assustadoramente. Soube pelo Raimundo que trabalhava comigo
e era “Cipeiro”. – Osvaldo eles não estão nem aí. Mesmo com quatro mortos na
Aciaria só este mês não resolveu. Isto sem contar outros duzentos com diversos
tipos de acidentes. Ninguém da Diretoria queria dar o braço torcer que a culpa
era o medo da Booz Allen e sua sanha em demitir. Porque não passar a lista dos
demitidos para a chefia? Porque ela não chama um por um e comunica com mais
humanidade? Não adiantou. Os acidentes duplicaram. Quem poderia trabalhar em
paz se mais dia menos dia seu cartão de ponto não estaria mais na chapeira?
Três meses de terror. Agora a
“peãozada” fazia rodinha em volta da Chapeira à medida que os caminhões lotados
chegavam. Acabou-se a solidariedade. Cada um por si e Deus para todos. Uma
maldade por parte de amigos do passado se fez presente. Risinhos jocosos,
palmas e gargalhadas quando alguém dava falta do seu cartão de ponto. A dor de
ser demitido era agora aumentada pelas chacotas dos que ficaram. Eu soube como
era difícil uma demissão, sem eira e nem beira, sem dinheiro e tendo que
desocupar a casa da Usina para receber. Eu sabia como foi difícil para muitos
chegar e avisar sua família que fora demitido. A indenização naquela época não
é como hoje. Com medo das chacotas passei a descer do caminhão por último e
ficar em uma esquina da Balança Ferroviária até o toque da sirene. Hora da
troca do turno. Ninguém lá e eu ia bater o meu cartão rezando. Deus! Por favor!
Não deixe que tenha sido escolhido! Mas não adiantou. Um dia meu cartão não
estava mais lá. Meu dia chegou. Tremi. A voz embargada. Queria chorar e não
consegui. Fui para o Alto Forno trabalhar com a mente sem saber o que pensar.
Eles, os peões meus amigos vieram solidarizar. Sabiam que eu era o próximo da
lista. Passei uma noite sinistra trabalhando ali naquela “Boca do Forno”. Minha
última noite. Não culpei ninguém, sempre
disse a mim mesmo que o que tem de ser será.
Pela manhã não me despedi de
nenhum amigo. Olhos vermelhos. Deixei para pegar o caminhão de retorno na
Laminação bem longe deles. Tinha medo de chorar. A turma que no ponto esperava
a condução era desconhecida. Mas seus semblantes eram os mesmos. O medo de uma
demissão. Celia me esperava na porta. Morávamos em uma casa simples no Bairro
da Candangolândia. Casinha pequenina. Telhado de amianto. Um quarto, sala e
cozinha. Banheiros no quintal. Ela chorava, já sabia quando me viu. Abracei-a
também chorando. Ficamos ali sentados e abraçados em um banco que existia em
frente à casa, com meu primeiro filho de um ano e meio brincando na grama do
quintal. As coisas são assim. Ninguém passa pela vida sem pisar em espinhos.
Duro foi sair da Usina. Só me pagariam se saísse da casa que lhes pertenciam.
Uma história para ser contada em outra ocasião.
Duas semanas depois, partimos. No pequeno
Chevrolet do Seu Nestor com meus poucos apetrechos partimos. Minha mãe na
capital me ofereceu um quartinho. Na estrada com o caminhão sacolejando na
estrada de terra, lá na “boleia” ia eu Celia, Jan e seu Nestor. Paramos em uma
vendinha para comprar pães e mortadela. Nossas refeições até chegar a minha
nova morada. Dei-me ao luxo de comprar um Guaraná para meu filho, pois o
dinheiro era curto. A viagem seria longa, mais de nove horas naquela boleia
sacolejante. Jan o meu filho de um ano
sorria, sorriso de criança é lindo. É contagiante. Mas eu e Celia com os olhos
marejados de lágrimas seguíamos pensando o que a vida nos reservaria. O que
será de nós a partir de agora? Lembrei-me do que disse o Lobo Gris aos seus
irmãos na Pedra do Conselho quando Mowgly partiu. – “As estrelas desmaiam,
concluiu o Lobo Gris de olhos erguidos para o céu. Onde me aninharei amanhã? Porque
dora em diante os caminhos são novos”! Mas isto é outra história.
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