EM ALGUM LUGAR DO PASSADO

EM ALGUM LUGAR DO PASSADO
Celia, 49 anos de felicidade. Não sei viver sem ela

sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

As flores lindas da primavera voltaram. (Baseado em fatos reais).



As flores lindas da primavera voltaram.
(Baseado em fatos reais).

               Lembranças nem sempre nos trazem o perfume das flores singelas que desabrocham na primavera. O que acontece conosco sabemos que nem sempre é um mar de rosas e as dificuldades acontecem porque estão definidas em nossa vida. Estou a contar fatos que aconteceram, e mesmo amargos na época, ainda nos trás uma pontinha de saudade. Vou voltar no tempo. 1961/65. Eu era feliz. Recém-casado já com meu primeiro filho vivia no corre, corre em cima de uma bicicleta que me levava de casa para o trabalho e o escotismo. Trabalhava em turno. Usiminas. Grande siderúrgica. Milhares de peões como eu. Um formigueiro humano de gente saindo e outros entrando. Eu gostava de trabalhar ali. Nos meus vinte e três anos eu era muito feliz. Planos eram poucos. Ter mais um ou dois filhos e ser feliz como sempre fui. Sempre gostei de trabalhar. Fiz muitos amigos. Mesmo no horário de meia noite as oito da manhã eu ainda sorria ao retornar para meu lar. Nunca lamentei. Não era rico, mas dava para viver. Quando não tinha carne na mesa tinha peixe. Era só ir pescar no Rio Piracicaba um rio pequeno, mas piscoso. Bem ao lado de minha casa.

                 Tantas coisas aconteceram ali. A morte de dezenas de peões pelas autoridades policiais da época, fatos escondidos na imprensa, tudo por que a Segurança da Usina se tornou uma KGB. Outra história para contar no futuro. A vida não parava. Veio uma epidemia de sarna, meus braços e pernas ficaram em carne viva. Em 1964 a gente via os vários trens lotados de prisioneiros levados para Belo Horizonte no DOPS. Quantos suplícios e covardia aconteceram com eles.  Não era um estudante e nem um leitor assíduo dos fatos, portanto não liguei muito pelo acontecido. Minha vida agora era proteger minha família e trabalhar. Eu sonhava com um futuro, sonho simples. Nada de riqueza e grandes conquistas. Era um homem feliz e trabalhando na “boca do forno” nunca reclamei. Eu gostava dali, dos meus amigos e nas folgas quando me encontrava com meus meninos Escoteiros. Nunca faltei e nunca cheguei atrasado. Um dia soube que ela estava chegando. A Rádio Peão já tinha anunciado em manchetes. A Temida Booz Allen Hamilton iria dar seu veredito de quem fica e quem sai. Sua fama já era conhecida no Brasil. Muitos tremiam quando viam seus engravatados espalhados pela usina. Fora contratada para fazer uma reformulação de pessoal. O medo se apossou de todos. Os idealizadores da Usina os japoneses do pós-guerra, diziam que cada tarefa precisava de cinco brasileiros para executar. Era assim no Japão. Os novos brasileiros na Diretoria achavam que não. Uma limpeza precisava ser feita e reformulação chamada na época de Organizações e Métodos pretendia demitir quarenta por cento dos funcionários. Dos onze mil pelo menos quatro mil e quinhentos iam dar adeus ao seu emprego.

                  As rodinhas de funcionários aqui e ali comentando. No meu setor cinco engravatados nos chamavam um a um. – O que você faz? Para que serve? Quem é seu Chefe? E assim as perguntas pipocavam. Um questionário temido. Quase duas horas respondendo engasgado e tremendo. A gente que vivia feliz contando piadas no forno quente para passar o tempo, agora vivia com um medo terrível. Quando eles os engravatados apareciam no alto forno um silencio sepulcral. Agora não havia mais conversa a dois. Não havia mais rodinha onde se comentava os fatos do dia. No refeitório ninguém olhava para ninguém. Chegou a hora de cada um pensar si. Demissão? Trabalhar onde? Eu mesmo sabia como foi chegar até ali. Começara tudo de novo? Onde? Eu tinha mulher e filho para sustentar. Precisava trabalhar. Minhas noites agora eram mal dormidas, pesadelos aconteciam. E então começaram as demissões tão anunciadas. Meu Deus que covardia eles usaram para demitir. Todos desciam dos caminhões que os levavam até seu setor de trabalho e uma fila se formava para bater o ponto. – Quem não encontrasse o cartão de ponto na chapeira estava demitido. Na fila uma tremedeira. Todos rezando para que seu cartão de ponto estivesse lá. Até hoje fico pensando se eles se divertiram com esta maldade. Você mal dorme, pega um caminhão lotado de peões chega ao trabalho por volta das onze e meia da noite e entra em uma fila para descobrir que seu cartão não está lá?

                Foram dois meses de agonia. O Tião foi demitido. O Waltinho e o Nonô também. Até o Marquinhos que era Mestre de forno também foi. A turma do meu departamento iam um atrás do outro. No caminhão na ida e vinda ninguém falava. Soube que a CIPA (Comissão Interna de Prevenção de Acidentes) levantou o problema para a diretoria. O número de acidentes crescera assustadoramente. Soube pelo Raimundo que trabalhava comigo e era “Cipeiro”. – Osvaldo eles não estão nem aí. Mesmo com quatro mortos na Aciaria só este mês não resolveu. Isto sem contar outros duzentos com diversos tipos de acidentes. Ninguém da Diretoria queria dar o braço torcer que a culpa era o medo da Booz Allen e sua sanha em demitir. Porque não passar a lista dos demitidos para a chefia? Porque ela não chama um por um e comunica com mais humanidade? Não adiantou. Os acidentes duplicaram. Quem poderia trabalhar em paz se mais dia menos dia seu cartão de ponto não estaria mais na chapeira?

                Três meses de terror. Agora a “peãozada” fazia rodinha em volta da Chapeira à medida que os caminhões lotados chegavam. Acabou-se a solidariedade. Cada um por si e Deus para todos. Uma maldade por parte de amigos do passado se fez presente. Risinhos jocosos, palmas e gargalhadas quando alguém dava falta do seu cartão de ponto. A dor de ser demitido era agora aumentada pelas chacotas dos que ficaram. Eu soube como era difícil uma demissão, sem eira e nem beira, sem dinheiro e tendo que desocupar a casa da Usina para receber. Eu sabia como foi difícil para muitos chegar e avisar sua família que fora demitido. A indenização naquela época não é como hoje. Com medo das chacotas passei a descer do caminhão por último e ficar em uma esquina da Balança Ferroviária até o toque da sirene. Hora da troca do turno. Ninguém lá e eu ia bater o meu cartão rezando. Deus! Por favor! Não deixe que tenha sido escolhido! Mas não adiantou. Um dia meu cartão não estava mais lá. Meu dia chegou. Tremi. A voz embargada. Queria chorar e não consegui. Fui para o Alto Forno trabalhar com a mente sem saber o que pensar. Eles, os peões meus amigos vieram solidarizar. Sabiam que eu era o próximo da lista. Passei uma noite sinistra trabalhando ali naquela “Boca do Forno”. Minha última noite.  Não culpei ninguém, sempre disse a mim mesmo que o que tem de ser será.

               Pela manhã não me despedi de nenhum amigo. Olhos vermelhos. Deixei para pegar o caminhão de retorno na Laminação bem longe deles. Tinha medo de chorar. A turma que no ponto esperava a condução era desconhecida. Mas seus semblantes eram os mesmos. O medo de uma demissão. Celia me esperava na porta. Morávamos em uma casa simples no Bairro da Candangolândia. Casinha pequenina. Telhado de amianto. Um quarto, sala e cozinha. Banheiros no quintal. Ela chorava, já sabia quando me viu. Abracei-a também chorando. Ficamos ali sentados e abraçados em um banco que existia em frente à casa, com meu primeiro filho de um ano e meio brincando na grama do quintal. As coisas são assim. Ninguém passa pela vida sem pisar em espinhos. Duro foi sair da Usina. Só me pagariam se saísse da casa que lhes pertenciam. Uma história para ser contada em outra ocasião.


             Duas semanas depois, partimos. No pequeno Chevrolet do Seu Nestor com meus poucos apetrechos partimos. Minha mãe na capital me ofereceu um quartinho. Na estrada com o caminhão sacolejando na estrada de terra, lá na “boleia” ia eu Celia, Jan e seu Nestor. Paramos em uma vendinha para comprar pães e mortadela. Nossas refeições até chegar a minha nova morada. Dei-me ao luxo de comprar um Guaraná para meu filho, pois o dinheiro era curto. A viagem seria longa, mais de nove horas naquela boleia sacolejante.  Jan o meu filho de um ano sorria, sorriso de criança é lindo. É contagiante. Mas eu e Celia com os olhos marejados de lágrimas seguíamos pensando o que a vida nos reservaria. O que será de nós a partir de agora? Lembrei-me do que disse o Lobo Gris aos seus irmãos na Pedra do Conselho quando Mowgly partiu. – “As estrelas desmaiam, concluiu o Lobo Gris de olhos erguidos para o céu. Onde me aninharei amanhã? Porque dora em diante os caminhos são novos”! Mas isto é outra história. 

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