As flores lindas da primavera voltaram.
(Baseado
em fatos reais).
Lembranças nem sempre nos trazem
o perfume das flores singelas que desabrocham na primavera. Se acharmos que a
vida não é um mar de rosas e as dificuldades e os desapontamentos e incertezas
de fatos que aconteceram, e mesmo amargos na época, mesmo assim ainda nos trás
uma pontinha de saudade. Vou voltar no tempo. 1961/65. Eu era feliz.
Recém-casado já com meu primeiro filho vivia no corre, corre em cima de uma
bicicleta que me levava de casa para o trabalho e o escotismo. Trabalhava em
turno. Usiminas. Grande siderúrgica. Milhares de peões como eu. Um formigueiro
de gente saindo e outro entrando. Eu gostava de trabalhar ali. Nos meus vinte e
três anos eu era muito feliz. Planos eram poucos. Só ter mais um ou dois filhos
e ser feliz como sempre fui. A vida para mim sem trabalho não tinha sentido e
não me fazia bem. Fiz muitos amigos. Mesmo no horário de meia noite as oito da
manhã eu ainda sorria ao retornar para meu lar. Nunca lamentei. Não era rico,
mas dava para viver. Quando não tinha carne na mesa tinha peixe. Eu nas folgas
ia pescar no Piracicaba um rio pequeno, mas piscoso.
Tantas coisas aconteceram ali.
A morte de dezenas de peões pelas autoridades policiais da época, fatos
escondidos na imprensa, tudo por que a Segurança da Usina se tornou uma KGB.
Outra história para contar no futuro. Uma coceira, ou melhor, uma sarna que
varreu a peãozada e duraram meses, me foi presenteada. Meses coçando isto sem
considerar a perna e os braços que ficaram em carne viva, nunca reclamei. Os
vários trens lotados de prisioneiros para averiguações em Belo Horizonte no
DOPS durante a revolução dos militares não era problema meu. Eu tinha um
futuro, simples, mas tinha. Era um homem feliz e ali nunca reclamei. Tudo isto
passava por mim como se fosse uma história contada só para divertir. Não
faltava e nem chegava atrasado. Um dia soube que ela estava chegando. A Rádio
Peão já tinha anunciado em manchetes. A Temida
Booz Allen Hamilton uma empresa de consultoria
especializada em Estratégia estava chegando. Sua fama já era conhecida no
Brasil. Contratada pela Usina para fazer uma reformulação. O medo se apossou de
todos. Os idealizadores da Usina os japoneses do pós-guerra, diziam que cada
tarefa precisava de cinco funcionários, brasileiros novos na Diretoria achando
que não. Uma limpeza precisava ser feita e reformulação chamada na época de
Organizações e Métodos pretendia demitir quarenta por cento dos funcionários.
Dos onze mil pelo menos quatro mil e quinhentos iam dar adeus ao seu emprego.
As rodinhas de funcionários
aqui e ali só comentando. No meu setor cinco engravatados nos chamavam um a um.
– O que você faz? Para que serve? Quem é seu Chefe? E assim as perguntas
pipocavam. Um questionário temido. Quase duas horas respondendo engasgado. Um
medo tremendo. A gente que vivia feliz contando piadas passou a ter um medo
terrível. A maioria de nós passava longe dos engravatados. Agora não havia mais
conversa a dois. Não havia mais rodinha onde se comentava os fatos do dia. Cada
um infelizmente só pensava em si. Ir embora? Trabalhar onde? Eu mesmo sabia
como era difícil conseguir outro emprego. Foi difícil para conseguir este. Tinha
mulher e filho para sustentar. Precisava trabalhar. As noites mal dormidas, os
pesadelos e então começou as demissões tão anunciadas. Meu Deus que covardia
eles usaram para demitir. Todos desciam dos caminhões que os levavam até seu
setor de trabalho e uma fila se formava para bater o ponto. – Quem não
encontrasse o cartão de ponto estava demitido. Na fila uma tremedeira. Todos
rezando para que seu cartão estivesse lá. Até hoje fico pensando se era uma
ação correta. Você mal dorme, pega um caminhão lotado de peões chega ao
trabalho por volta das onze e meia da noite e entra em uma fila para descobrir
que seu cartão não está lá?
Foram dois meses de agonia. O
Tião foi demitido. O Waltinho também. Até o Marquinhos que era Mestre também
foi. Assim um atrás do outros. No caminhão na ida e vinda ninguém falava. Soube
que a CIPA (Comissão Interna de Prevenção de Acidentes) levantou o problema
para a diretoria. O número de acidentes crescera assustadoramente. Soube pelo
Raimundo que trabalhava comigo e era “Cipeiro”. – Osvaldo eles não estão nem
aí. Mesmo com quatro mortos na Aciaria só este mês não resolveu. Isto sem
contar outros duzentos com diversos tipos de acidentes. Ninguém da Diretoria
queria dar o braço a torcer que a culpa era do modo de ação da Booz Allem.
Porque não passar a lista dos demitidos para a chefia? Porque ela não chamar um
por um e comunicar com mais humanidade? Não adiantou. Os acidentes duplicaram.
Quem poderia trabalhar em paz se mais dia menos dia seu cartão de ponto não estivesse
na chapeira?
Três meses de terror. Agora a
“peãozada” fazia rodinha em volta da Chapeira à medida que os caminhões
chegavam. Acabou-se a solidariedade. Cada um por si e Deus para todos. Risinhos
jocosos, palmas quando alguém dava falta do seu cartão de ponto. A dor de ser
demitido era agora aumentada pelas chacotas dos que ficaram. Seria uma noite
incrível do demitido quando retornasse a seu lar. Muitos não tinham a menor
ideia do que fazer se isto acontecesse. A indenização naquela época não é como
hoje. Passei a descer do caminhão por último e ficar em uma esquina da Balança
Ferroviária até o toque da sirene. Hora da troca do turno. Ninguém lá e eu ia
bater o meu cartão rezando. Deus! Por favor! Não deixe que tenha sido
escolhido. Mas não adiantou. Um dia meu cartão não estava mais lá. Meu dia
chegou. Tremi. A voz embargada. Queria chorar e não consegui. Fui para o Alto
Forno trabalhar com a mente sem saber o que pensar. Eles, os peões meus amigos
vieram solidarizar. Sabiam que eu era o próximo da lista. Passei uma noite
sinistra trabalhando ali naquela “Boca do Forno”. Minha última noite. Não
culpei ninguém, pois não fui o único.
Pela manhã não me despedi de
nenhum amigo. Deixei para pegar o caminhão de retorno na Laminação. Bem longe
deles. Era minha última viagem. Tinha medo de chorar. A turma que no ponto
esperava a condução era desconhecida. Mas seus semblantes eram os mesmos. O
medo de uma demissão. Celia me esperava na porta. Morávamos em uma casa simples
no Bairro da Candangolândia. Belo nome. Casinha pequenina. Telhado de amianto.
Um quarto, sala e cozinha. Banheiros no quintal. Ela chorava. Abracei-a também
chorando. Ficamos ali sentados e abraçados em um banco que existia em frente a
casa, com meu primeiro filho de um ano e meio brincando na grama do quintal. As
coisas são assim. Ninguém passa pela vida sem pisar em espinhos. Duro foi sair
da Usina. Só me pagariam se saísse da casa que lhes pertenciam. Uma história
para ser contada em outra ocasião.
Duas semanas depois, após eu e Célia
carregarmos o pequeno Chevrolet do Seu Nestor com meus poucos apetrechos,
partimos. Minha mãe na capital me ofereceu um quartinho. Na estrada com o
caminhão sacolejando na estrada de terra, lá na “boleia” ia eu Celia, Jan e seu
Nestor. Paramos em uma vendinha para comprar pães e mortadela. Nossas refeições
até chegar a minha nova morada. Dei-me ao luxo de comprar um Guaraná para meu
filho, pois o dinheiro era curto. A viagem seria longa, mais de nove horas
naquela boleia sacolejante. Meu filho de
um ano e pouco sorria, sorriso de criança é lindo. É contagiante. Mas eu e
Celia com os olhos marejados de lágrimas seguíamos pensando o que a vida nos
reservaria. O que será de nós a partir de agora? Lembrei-me do que disse o Lobo
Gris aos seus irmãos na Pedra do Conselho quando Mowgly partiu. – “As estrelas
desmaiam, concluiu o Lobo Gris de olhos erguidos para o céu. Onde me aninharei
amanhã? Porque dora em diante os caminhos são novos”! Mas isto é outra
história.
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