EM ALGUM LUGAR DO PASSADO

EM ALGUM LUGAR DO PASSADO
Celia, 49 anos de felicidade. Não sei viver sem ela

sexta-feira, 31 de maio de 2013

As flores lindas da primavera voltaram.

As flores lindas da primavera voltaram.
(Baseado em fatos reais).


                Lembranças nem sempre nos trazem o perfume das flores singelas que desabrocham na primavera. Se acharmos que a vida não é um mar de rosas e as dificuldades e os desapontamentos e incertezas de fatos que aconteceram, e mesmo amargos na época, mesmo assim ainda nos trás uma pontinha de saudade. Vou voltar no tempo. 1961/65. Eu era feliz. Recém-casado já com meu primeiro filho vivia no corre, corre em cima de uma bicicleta que me levava de casa para o trabalho e o escotismo. Trabalhava em turno. Usiminas. Grande siderúrgica. Milhares de peões como eu. Um formigueiro de gente saindo e outro entrando. Eu gostava de trabalhar ali. Nos meus vinte e três anos eu era muito feliz. Planos eram poucos. Só ter mais um ou dois filhos e ser feliz como sempre fui. A vida para mim sem trabalho não tinha sentido e não me fazia bem. Fiz muitos amigos. Mesmo no horário de meia noite as oito da manhã eu ainda sorria ao retornar para meu lar. Nunca lamentei. Não era rico, mas dava para viver. Quando não tinha carne na mesa tinha peixe. Eu nas folgas ia pescar no Piracicaba um rio pequeno, mas piscoso.

                 Tantas coisas aconteceram ali. A morte de dezenas de peões pelas autoridades policiais da época, fatos escondidos na imprensa, tudo por que a Segurança da Usina se tornou uma KGB. Outra história para contar no futuro. Uma coceira, ou melhor, uma sarna que varreu a peãozada e duraram meses, me foi presenteada. Meses coçando isto sem considerar a perna e os braços que ficaram em carne viva, nunca reclamei. Os vários trens lotados de prisioneiros para averiguações em Belo Horizonte no DOPS durante a revolução dos militares não era problema meu. Eu tinha um futuro, simples, mas tinha. Era um homem feliz e ali nunca reclamei. Tudo isto passava por mim como se fosse uma história contada só para divertir. Não faltava e nem chegava atrasado. Um dia soube que ela estava chegando. A Rádio Peão já tinha anunciado em manchetes. A Temida Booz Allen Hamilton uma empresa de consultoria especializada em Estratégia estava chegando. Sua fama já era conhecida no Brasil. Contratada pela Usina para fazer uma reformulação. O medo se apossou de todos. Os idealizadores da Usina os japoneses do pós-guerra, diziam que cada tarefa precisava de cinco funcionários, brasileiros novos na Diretoria achando que não. Uma limpeza precisava ser feita e reformulação chamada na época de Organizações e Métodos pretendia demitir quarenta por cento dos funcionários. Dos onze mil pelo menos quatro mil e quinhentos iam dar adeus ao seu emprego.

                  As rodinhas de funcionários aqui e ali só comentando. No meu setor cinco engravatados nos chamavam um a um. – O que você faz? Para que serve? Quem é seu Chefe? E assim as perguntas pipocavam. Um questionário temido. Quase duas horas respondendo engasgado. Um medo tremendo. A gente que vivia feliz contando piadas passou a ter um medo terrível. A maioria de nós passava longe dos engravatados. Agora não havia mais conversa a dois. Não havia mais rodinha onde se comentava os fatos do dia. Cada um infelizmente só pensava em si. Ir embora? Trabalhar onde? Eu mesmo sabia como era difícil conseguir outro emprego. Foi difícil para conseguir este. Tinha mulher e filho para sustentar. Precisava trabalhar. As noites mal dormidas, os pesadelos e então começou as demissões tão anunciadas. Meu Deus que covardia eles usaram para demitir. Todos desciam dos caminhões que os levavam até seu setor de trabalho e uma fila se formava para bater o ponto. – Quem não encontrasse o cartão de ponto estava demitido. Na fila uma tremedeira. Todos rezando para que seu cartão estivesse lá. Até hoje fico pensando se era uma ação correta. Você mal dorme, pega um caminhão lotado de peões chega ao trabalho por volta das onze e meia da noite e entra em uma fila para descobrir que seu cartão não está lá?

                Foram dois meses de agonia. O Tião foi demitido. O Waltinho também. Até o Marquinhos que era Mestre também foi. Assim um atrás do outros. No caminhão na ida e vinda ninguém falava. Soube que a CIPA (Comissão Interna de Prevenção de Acidentes) levantou o problema para a diretoria. O número de acidentes crescera assustadoramente. Soube pelo Raimundo que trabalhava comigo e era “Cipeiro”. – Osvaldo eles não estão nem aí. Mesmo com quatro mortos na Aciaria só este mês não resolveu. Isto sem contar outros duzentos com diversos tipos de acidentes. Ninguém da Diretoria queria dar o braço a torcer que a culpa era do modo de ação da Booz Allem. Porque não passar a lista dos demitidos para a chefia? Porque ela não chamar um por um e comunicar com mais humanidade? Não adiantou. Os acidentes duplicaram. Quem poderia trabalhar em paz se mais dia menos dia seu cartão de ponto não estivesse na chapeira?

                Três meses de terror. Agora a “peãozada” fazia rodinha em volta da Chapeira à medida que os caminhões chegavam. Acabou-se a solidariedade. Cada um por si e Deus para todos. Risinhos jocosos, palmas quando alguém dava falta do seu cartão de ponto. A dor de ser demitido era agora aumentada pelas chacotas dos que ficaram. Seria uma noite incrível do demitido quando retornasse a seu lar. Muitos não tinham a menor ideia do que fazer se isto acontecesse. A indenização naquela época não é como hoje. Passei a descer do caminhão por último e ficar em uma esquina da Balança Ferroviária até o toque da sirene. Hora da troca do turno. Ninguém lá e eu ia bater o meu cartão rezando. Deus! Por favor! Não deixe que tenha sido escolhido. Mas não adiantou. Um dia meu cartão não estava mais lá. Meu dia chegou. Tremi. A voz embargada. Queria chorar e não consegui. Fui para o Alto Forno trabalhar com a mente sem saber o que pensar. Eles, os peões meus amigos vieram solidarizar. Sabiam que eu era o próximo da lista. Passei uma noite sinistra trabalhando ali naquela “Boca do Forno”. Minha última noite. Não culpei ninguém, pois não fui o único.

               Pela manhã não me despedi de nenhum amigo. Deixei para pegar o caminhão de retorno na Laminação. Bem longe deles. Era minha última viagem. Tinha medo de chorar. A turma que no ponto esperava a condução era desconhecida. Mas seus semblantes eram os mesmos. O medo de uma demissão. Celia me esperava na porta. Morávamos em uma casa simples no Bairro da Candangolândia. Belo nome. Casinha pequenina. Telhado de amianto. Um quarto, sala e cozinha. Banheiros no quintal. Ela chorava. Abracei-a também chorando. Ficamos ali sentados e abraçados em um banco que existia em frente a casa, com meu primeiro filho de um ano e meio brincando na grama do quintal. As coisas são assim. Ninguém passa pela vida sem pisar em espinhos. Duro foi sair da Usina. Só me pagariam se saísse da casa que lhes pertenciam. Uma história para ser contada em outra ocasião.


             Duas semanas depois, após eu e Célia carregarmos o pequeno Chevrolet do Seu Nestor com meus poucos apetrechos, partimos. Minha mãe na capital me ofereceu um quartinho. Na estrada com o caminhão sacolejando na estrada de terra, lá na “boleia” ia eu Celia, Jan e seu Nestor. Paramos em uma vendinha para comprar pães e mortadela. Nossas refeições até chegar a minha nova morada. Dei-me ao luxo de comprar um Guaraná para meu filho, pois o dinheiro era curto. A viagem seria longa, mais de nove horas naquela boleia sacolejante.  Meu filho de um ano e pouco sorria, sorriso de criança é lindo. É contagiante. Mas eu e Celia com os olhos marejados de lágrimas seguíamos pensando o que a vida nos reservaria. O que será de nós a partir de agora? Lembrei-me do que disse o Lobo Gris aos seus irmãos na Pedra do Conselho quando Mowgly partiu. – “As estrelas desmaiam, concluiu o Lobo Gris de olhos erguidos para o céu. Onde me aninharei amanhã? Porque dora em diante os caminhos são novos”! Mas isto é outra história. 

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