Um adeus ao Odair.
A vida às
vezes nos reserva surpresas e experiências que não deixam saudades, mas que
nunca esquecemos. Ainda solteiro e trabalhando na Usiminas em Ipatinga MG, eu o
Carlos e o Odair dividiam um alojamento próximo ao Carirú. Nada há ver com o
bairro, pois era destinada a nata da liderança da usina. Nós três morávamos em
um alojamento de madeira, infestado de percevejos e pela manhã ou durante o dia
quando acordávamos o corpo estava todo mordido. Uma situação insustentável. Como
participávamos do escotismo, e como já estava em andamento o plano de organizar
um grupo Escoteiro em Melo Viana resolvemos morar lá e vir trabalhar no
transporte da usina. Nada mais nada menos que um caminhão lonado com mais de
cem homens transportados por turno. Melo Viana era um distrito da cidade de
Coronel Fabriciano.
Alugamos uma
casinha de dois quartos e sala que servia de cozinha. Ali instalamos a nossa
republica. Nossas refeições eram feitas na pensão da dona Aurora. Em um domingo,
o Odair estava de folga de oitenta horas. Eu tinha trabalhado de meia noite as
oito e o Carlos ia pegar às quatro da tarde. Era assim nossa vida. Dificilmente
estávamos juntos os três. O Odair convidou amigos e estavam “batendo uma
pelada” em frente à casa. Entrei no jogo e o Carlos também. Com quinze minutos
de jogo o Odair tomou uma bolada no peito e caiu de maduro. Corremos para ele
que soltava golfadas de sangue pela boca. Era uma época diferente. Não tinha
carros assim para transporte facilmente. Conseguimos uma hora depois um taxi,
que nos comprometemos pagar no pagamento e levar o Odair ao Hospital Marcio
Cunha em Ipatinga. Um hospital que pertencia a Usiminas.
Odair chegou
morto ao hospital. Soubemos que tinha uma tuberculose avançada. A bolada
produziu uma hemorragia. Quase não saiamos de sua vida. Na Usiminas ele não
tinha amigos. Morava em Muriaé. Naquela época uma viagem de estradinhas de
terra até lá. Eu e o Carlos estávamos muito abalados com a morte dele. Éramos
os únicos amigos que ele tinha. Era nossa obrigação leva-lo ate sua família em
Muriaé. Onde morava lá teríamos que descobrir. Não foi fácil. Uma siderúrgica
que ainda não se preocupava com seus funcionários e mesmo tendo um departamento
com varias assistentes sociais custamos a conseguir um veículo para levá-lo. No
necrotério do hospital nos deram dicas para tentar conservar seu corpo antes que
entrasse em estado de decomposição. Sabíamos que após um dia o cheiro aumentava
e a pele sofria as primeiras decomposições.
Para dizer à
verdade o que vivemos nesta viagem poderia ser considerado um filme de terror.
De arrepiar os cabelos de qualquer defunto.
Depois que a gente passa desta para melhor, nosso corpo perde suas defesas e
começa a ser atacado por todos os lados: bactérias, animais e até substâncias
produzidas por nós mesmos dão início ao fim. O cadáver vai ficando escuro e
inchado, a pele e os órgãos se desfazem e o cérebro vira um caldo. Depois de
algum tempo, não sobra quase nada. Quase doze horas de viagem. Levamos três litros
de formol. A cada uma hora em todos os orifícios dele empapávamos algodão com
formol e colocávamos.
Eu rezava para chegar logo. Era um jipe o que a usina nos cedeu. Ainda bem
que um motorista educado e prestativo. Nem eu nem o Carlos tinha dinheiro nos
bolsos. O Zé Motorista pagou um café reforçado em um posto de gasolina que
parecia abandonado. Chegamos a Muriaé pela manhã. Interessante que quase toda a
cidade já sabia do acontecido ao Odair. Filho da terra sua família humilde era
bem quista. Fácil encontrar a casa dele. A família desesperada. A gente sem
saber como agir. Não tínhamos nenhuma experiência. Não ficamos para o enterro.
Zé Motorista tinha de cumprir uma escala e nós também. Sabíamos que a usina não
abonaria nossas fastas.
A viagem de volta foi uma viagem do silêncio. Eu pensando no acontecido.
Pensando no Odair. Pensando como a morte acontece de repente sem ninguém esperar.
Demorou meses para voltar ao normal. A casa parecia assombrada. À noite praticamente
a luz de lampião, pois a elétrica mal acendia uma lâmpada, nos assustávamos em
cada canto. Até hoje eu me lembro do Odair. Sua fisionomia foi desaparecendo
com os anos. Amigos de meses. Ficamos juntos acredito que por nove ou dez
meses. A morte é difícil de ser compreendida. Eu um espírita me assusto com ela
até hoje. Meus amigos foram partindo e eu ficando. Lá se foi o Carlos. Ainda
novo em uma batida de seu automóvel em Juiz de Fora. E cada um foi indo. O Lucio,
Dona Lucia, o Dutra e tantos outros partiram. Eu fui ficando.
Nosso passado não nos serve só como lembrança. Ele tem também a
esperança do aprendizado. A vida é um eterno aprendizado. Temos livre arbítrio
para decidir nosso destino, mas ele foi traçado antes. Se no caminho certo ou
não teremos que voltar e refazer o caminho. Meu dia vai chegar. Não corro para
isto. Quando chegar tudo bem. Para isto acredito em Deus. Acredito numa força
maior que vai me dizer se minha trilha foi a que eu e alguns lá de cima tinham programado.
Se não, não vou gritar exasperar nada disto. Vou aceitar. Sempre dito para mim
mesmo – O que tem de ser será...
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