Um “causo” do acontecido
Minha vida de gerente de uma fazenda foi cheia de atropelos.
Esta historia começou logo quando cheguei. E terminou quando todos nós já
estávamos juntos naquele sertão. Não
tinha ainda passado dois meses e a minha família não tinha feito a mudança da
capital. Claro, esperávamos as férias escolares para que fosse feito a
transferência e a mudança sem prejudicar os filhos. Apesar de todos estes
acontecimentos, saibam que passei ali naquela fazenda um dos melhores anos da
minha vida. O que aconteceu naquele dia, poucos vão acreditar e é melhor assim.
Ficar como ficção vale mais que a realidade do fato. Entretanto fatos são
fatos. Verdadeiros ou não. Risos.
Mudei completamente meus hábitos de cidade grande. Dormia cedo.
Muito. Morava só e a noite não tinha ninguém para conversar. A sede central
tinha um gerador, mas eu quase não o ligava. Um rádio de pilha me mantinha
informado do que acontecia no mundo e mais nada. Quando ia a Pirapora comprava
todos os jornais e revistas. Dava para me divertir durante a semana. Como
dormia cedo levantava todos os dias as quatro ou cinco da matina. Achava que
tinha de acompanhar os vaqueiros em uma das curralamas que lá existiam, pois
sempre neste horário tinham que apartar a bezerrada e tirar um pouco de leite
das vacas. Nada de extraordinário. Pouco leite. Em cada curralama (eram três) sempre
tínhamos uma media de 80 a 120 vacas paridas.
Era divertido. Eu gostava de tudo. Aprendi inclusive ainda
escuro, a laçar um cavalo, arriar e me mandava a cada dia para uma das
curralamas. Nos primeiros meses ficar em cima de uma cela, era um suplicio. Aos
poucos como dizem os vaqueiros, fui criando calo na “bunda” risos. Em cada
curral (eram três) sempre havia de dois a quatro vaqueiros. Dependia muito do
numero da vacada parida. Estava eu absorto em cima de uma cerca de madeira do
curral, observando a apartação de alguns bezerros e vi uma nuvem de poeira
vindo em nossa direção da estrada que saia das barrancas do Rio das Velhas. Não
era comum visitas, mas fiquei alerta para saber quem eram. Aos poucos foram
chegando. Eram quatro a cavalo. Admirei-me com um deles. Novo menos de 30 anos.
Um chapéu texano, perneiras amarelas, e uma jaqueta de couro preta de dar
inveja. O pior, um cinturão cheio de balas e dois revolveres um em cada lado
nas respectivas capas.
Ali estava uma autentica figura recém saída do Velho oeste americano.
Chegou, me olhou, olhou os vaqueiros, apeou a moda dos pistoleiros dos filmes
de western, sem tirar os olhos e sem dar as costas. Desceu, fez sinal para eu
aproximar. Apenas um dedinho. Quase morri de rir, mas vi que era coisa séria.
Fiz sinal para ele vir até onde estava. Aboletado no alto da cerca e ele
ficaria na parte baixa, e claro completamente dominado. Risos. Olhou-me com uns
olhos que em outras épocas iriam me fazer tremer. Disse-me falando baixo, que
soubera que na fazenda tinha duas vacas de sua fazenda. Chamei o Manezinho. - Leve
o moço para uma volta na lagoa. Deixe ele averiguar. Ele agradeceu. Olhei para
ele de novo e expliquei que não sabíamos de nada. Se por acaso achássemos
avisaríamos. Não gostou. Montou com movimentos lentos. Partiram.
Passou-se quase um ano. Manezinho me procurou e disse que
faltavam mais de 30 cabeças do gado do Pique Manero. Um piquete enorme que
fazia divisa com o rio das Velhas. Contaram para ele no puteiro em Pirapora
(era um freqüentador nato e muito conhecido lá – risos – e eu também - risos)
que elas estavam na fazenda do Mario Moreno. Riu e completou - O pistoleiro que
esteve aqui ano passado é o administrador lá. Não podia deixar passar em
branco. Se isto acontecesse iria se repetir sempre. Saibam que não sou um
valentão. Nunca fui. Mas era o gerente da fazenda, ou tomava uma atitude ou
seria desrespeitado para sempre. Até aquele dia nunca tinha usado uma arma.
Fora o Fuzil Mauser que usei no exército e uma metralhadora, mais nada. O
delegado Amâncio disse não poder me ajudar. Ele não podia entrar lá sem provas.
Era meu amigo, ia sempre à fazenda pescar na lagoa. Um dos poucos que deixava
entrar.
Vendeu-me um colt barato um 38 cano longo. Disse que era uma boa
arma. Comprei cinco caixas de balas. Fiquei dois dias no capão da larga grande
dando tiros a granel. Parecia que eu ia para a guerra. Risos. Sabia que nunca
atiraria em ninguém. A arma me amedrontava, mas me dava um ar de coragem. Numa
sexta feira partimos. Seis vaqueiros. Não deixei ninguém ir armado. Só eu. Foi
um barato atravessar o rio das Velhas agarrado no rabo do cavalo. Nossas roupas
ficaram presas nas selas. Poderíamos ter ido até a ponte de Várzea da Palma,
mas era uma volta de mais de 25 quilômetros. Não foi difícil alcançar a sede da
fazenda. Menos de duas léguas. (uma légua tem seis quilômetros) avistamos a
casa sede. Pequena ao lado devia ser a casa do tal administrador da fazenda.
Não me sentia bem com tudo aquilo. Não estava tranqüilo. Não
sabia a reação do pistoleiro. Batemos e ninguém nos atendeu. Esperamos uns
vinte minutos e vimos ao longe um cavalo a todo galope. Era ele. Sem aquela
pompa de pistoleiro do oeste. Vestia uma calça jeans desbotada e uma camiseta.
Na cabeça um chapéu de couro comum. Chegou assustado. Pediu desculpas por não
estar em casa. Chamou a esposa dele e ela abriu a porta. Antes ficara com medo
e se trancou. Devia ser ordens dele. Convidou-me para entrar. Só eu. Ofereceu-me
um café ralo. Foi educado. Expliquei nosso objetivo. Jurou por tudo quando é
Deus que não sabia de nada. Caramba! O homem estava uma seda. Totalmente
diferente do pistoleiro que foi me visitar.
Perguntei se ele não se importava dos vaqueiros fazerem um
campeio pelos pastos quem sabe alguma rês seria encontrada? Ele me disse que
não tinha visto nada, mas como há tempos não tinha ido para um piquete ao norte
da serra negra quem sabe elas poderiam estar lá escondidas. Dito e feito. Não
eram 30. Eram mais de 80! Todas ainda com nossa marca. Ou o cara era burro ou
achou que nunca iríamos lá. Pediu desculpas. Jurou que não sabia de nada. Não
discuti. Acho que tinha muito mais lá. Desde o gerente anterior que substitui.
Não sei se ele se preocupava com isso. Após a junta partimos. Agradeci a ele
pela acolhida. Esperava um tiroteio e vi um sujeito medroso escondido dentro de
uma capa de valente. Chegamos às margens do rio já noite escura. Manezinho nos
aconselhou a não atravessar o rio à noite. Sabíamos que o gado não se
afastaria. Dormimos sob as estrelas. Já estava acostumado.
No dia seguinte atravessamos. Só um garrote guzerá metido a
esperto deu trabalho. Não queria atravessar de maneira nenhuma. Cheguei em casa
lá pela uma da tarde. Estava cansado. Fora para mim uma aventura. Deitei de roupa e tudo na cama. Nem almocei. Dormi
e só acordei no outro dia às quatro da manhã. Um banho, roupa limpa e lá ia eu laçar
o Negro azul, um cavalo baio que era o meu favorito. Na curralama da larguinha,
O Mané e os outros contavam historias. Não escutei todas, mas esta ficou
marcada também para eles. Encontrei lá o Honório. Ele sempre me procurava para
comprar alguma vaca velha para seu açougue. Contei a historia para ele. Riu.
Disse que todos os açougueiros sempre iam a fazenda dele para comprar uma vaca.
Ele cobrava barato. Imaginei de quem seria essas vacas.
Tudo na vida a gente aprende a dar valor. Cada dia que vivemos
mais crescemos em espírito. É como se fosse uma escola que você não passa por
ela. Ela passa por você. Célia e os meninos até hoje me pedem para contar a
aventura. Todos me olhando e querendo saber se dei algum tiro. Adoro meus
filhos. Hoje o mais novo passou dos 36 anos. Mas ainda lembro-me de todos eles
correndo pelas campinas da fazenda, atrás dos avestruzes ou dos “cocar”
(galinhas d’angola selvagens).
Valeu! Não só para mim, mas também para todos eles! Até hoje
contam historias. Até o caçula. Tinha três anos e parece se lembrar de tudo.
Não sei não. Mas como dizem por aí, histórias são histórias, nada mais que
histórias!