EM ALGUM LUGAR DO PASSADO

EM ALGUM LUGAR DO PASSADO
Celia, 49 anos de felicidade. Não sei viver sem ela

sábado, 24 de agosto de 2013

Ouro Negro, o magnifico manga-larga do sertão.



Ouro Negro, o magnifico manga-larga do sertão.

               A beleza de um cavalo é indiscutível. O seu porte, a crina, o pelo macio faz dele um dos animais mais queridos do homem. Sempre foi um fiel amigo e sempre presente nos mais variados momentos da história. Hoje tirei o dia para falar de um cavalo. Não um cavalo qualquer e sim de um Manga-larga marchador, uma raça que remonta a coudelaria Alter-Real e chegou ao Brasil por meio de nobre da Corte Portuguesa. Dizem os criadores que o Manga-larga é a mais bela criatura depois do homem. Aconselham que o melhor mister é criá-lo, a melhor das ocupações tratá-lo e o maior prazer montá-lo. Este introito é para dar uma ideia do que seria Ouro Negro. O conheci na fazenda que trabalhei por seis anos como Administrador. Um empreendimento enorme e quando lá cheguei de animais não entendia bulhufas.

               Meus primeiros dias de administrador foram de um aprendizado enorme. Como qualquer responsável por uma fazenda teria que ter um cavalo. Diziam que sem um eu estaria nu. Mas como escolher? Eram vários vaqueiros e cada um tinha o dele. A manada dos manga-larga era enorme. Eram intocáveis. Ordens da diretoria. Mais de trinta animais. Todos eles capitaneados por Ouro Negro. Que cavalo! Lindo mesmo. Alto, enorme e para minha infelicidade arisco e selvagem. Considerado um grande reprodutor era tratado como um rei. Manoel era o mais Velho vaqueiro de lá. Não podia dar bandeira. Sabia que sempre aproveitavam dos novos e lhe davam sempre o pior cavalo. Mais tarde fiquei sabendo que eles riam a vontade quando os visitantes ou empregados escolhiam o Pimentinha. Um cavalo ainda novo, mas preguiçoso. Dois passos parava. – Manoel não conheço cavalos, você escolhe. Se daqui a meses souber que sua escolha foi para rir de mim te coloco na rua no outro dia!

              Ele escolheu bem. Deu-me uma égua rajada com porte de rainha. Chamava-se Cristal. Eu e Cristal ficamos juntos durante meus seis anos que lá permaneci. Acho que ficamos amigos apesar de sempre me dar uma canseira pela madrugada quando ia laçar para o inicio das lides do dia. Mas eu tinha uma queda mesmo era para o Ouro Negro. Ele sempre junto a sua manada como a dizer - Aqui mando eu! Pensei até em criar junto a mim um potrinho que vi nascer e que era filho dele. Não deu certo. Jurei para mim que iria montá-lo, pois Manoel me disse que todos que tentaram caíram. O único que ficou alguns minutos sem sela foi ele. Manoel era um gozador. Vaqueiro dos bons. Magro como uma caveira. Barba enorme negra, dentes cariados, chapéu de couro a moda nordestina, perneiras e gibão de couro fazia dele um autêntico vaqueiro nordestino.

            Contaram-me várias histórias sobre os que tentaram montá-lo. Muitos nem conseguiam colocar nele a sela. O Próprio Presidente da Empresa, a quem chamavam de comandante foi ao chão por várias vezes. Aprendeu a cair caindo. Foi um desafio. Adoro desafios. Ia montar o Ouro Negro ou não era o Escoteiro que pensava ser. Bolei um plano. Ia conquista o Magnífico Ouro Negro pela barriga. Ninguém iria saber. Todos os domingos a sede da fazenda ficava vazia. A vaqueirada, os tratoristas e outros funcionários não apareciam. Eu despistava pela manhã e ia jogar a “pelada” que todos os domingos aconteciam nas terras do Seu Geraldo Velho. Era divertido. Vinha gente de toda a redondeza. Uma das poucas diversões da peãozada. No retorno almoçava cedo e ia direto ao “piquete onde era a morada de Ouro Negro”. Um bornal cheio de milho atravessado em meu ombro.

            Ouro Negro no inicio nem deu bola. Coloquei várias espigas na grama, em um galho baixo e ele passava perto e olhava para mim e saia com seu porte altivo. Demorou dois meses quando ele se interessou por uma espiga. Aos poucos comia quando eu chegava e quatro meses depois aceitou comer na minha mão. Foi um dia de alegria. Se tivesse foguetes tinha soltado. Deixou daí em diante que eu o acariciasse e até concordou quando levei a escova para escová-lo. Agora precisava colocar nele a rédea e por último a sela. De novo ele sumiu no canto do piquete. Voltou e sumiu novamente. Um dia deixou que eu colocasse nele a sela. E a coragem de montá-lo? Chamei a Celia e os meninos para assistir. Não para exibir não. Seria se eu sofresse alguma acidente na montaria. Deixei a C-10 em ponto de bala caso em me machucasse para ela me levar Ao pequeno Hospital de Pirapora. Surpresa. Ouro Negro deixou que eu o montasse sem reclamar, sem pular ou empinar. Dei algumas voltas e ele obedeceu.

             As coisas sempre tem uma razão de ser. No mês seguinte recebemos a visita do Comandante e ele como sempre trouxe uma comitiva de amigos. Quer saber? Os amigos do comandante eram quase todos esnobes. Achavam que os funcionários estavam ali para servi-los em tudo e isto me desgostava. Falei um dia ao Comandante. Ele riu e disse que ficasse em casa. Passasse para outros esta incumbência. Estava na minha varanda ouvindo no meu radinho de pilha a Radio Nacional quando o Antonio Tratorista veio me avisar que estavam todos na curralama e fazendo apostas em quem montaria o Ouro Negro. O Comandante macaco Velho não montou uma única vez. Nem o Manoel arriscou. Muita gente fazendo barulho e ele sabia que Ouro Negro estava arisco. – Quanto oferecem Antonio? - Seu Osvardo, já passou de cinco mil reais.

              Falei com a Celia e ela achava que eu não devia ir. Mesmo que montasse poderia ser que o Comandante não visse com bons olhos. Eu estava de olho em uma Variant Brasília que a amiga de minha mana em São Paulo estava vendendo por ótimo preço. Precisava de um carro. Nunca tive um na vida. Peguei três espigas de milho, coloquei no bolso, montei na Cristal e fui para a curralama. Estava uma festa lá. A cerveja jorrava. Tonico Borra Mancha improvisou uma churrasqueira e a carne parecia gostosa. Procurei o Comandante. Senhor! Quanto todos irão me pagar para montar o Ouro Negro? O Comandante caiu na risada. Falou com todos e eles queriam ver alguém se esborrachar no chão. Faltava para eles este espetáculo. Juntaram os reais de cada um. Chegou a onze mil reais. Papagaio! Quer saber? Minha consciência doeu. Ninguém sabia da minha amizade com Ouro Negro. Tudo foi feito as escondidas. Mas dinheiro é dinheiro, negócio é negócio,

              Fui devagar sem fazer barulho até Ouro Negro. Muitos anos de experiência no escotismo para se aproximar de animais selvagens apesar de que ele não era. Quando me viu levantou a cabeça e relinchou. Assustei. Ele não fazia aquilo sempre. Deixou que eu o acariciasse, joguei nele a rédea e aos poucos fui encilhando. Coloquei uma espiga em sua boca. Ele não reclamou. Chegou o momento sublime. Pé no estribo bem devagar. Ele tremeu e senti na rédea que ele parecia não gostar. Aos poucos montei. Ele não reclamou. Balancei a rédea, pois não usava esporas. Nunca gostei delas. Senti que ele deu um tranco e saiu a toda para o fundo do piquete. Aguentei-me o quanto pude. Não cai graças a Deus. No final do piquete ele parou. Direcionei a rédea até a curralama. Ele obedeceu. Pela primeira vez mostrou toda sua pose de Cavalo Marchador. Que orgulho. Ninguém nunca o tinha feito marchar. Era nato no Manga-larga. Vi que todos estavam estupefatos. Não acreditavam no que viam.


                O dinheiro veio a calhar. Foi um final de tarde glorioso e até comi churrasco de colchão duro que detestava. O tempo todo fiquei com a consciência pesada e quando o Comandante partiu naquela tarde de domingo eu contei toda a história. Ele deu boas risadas. – Valeu Osvaldo, valeu, nosso churrasco e o desafio tiveram novo sabor. Um mês depois eu olhava na porta da minha casa meu primeiro carro. A Variant branca era linda. Dois anos de uso. Sentia-me nas nuvens. Dizem que do primeiro a gente não esquece e eu nunca o esqueci. Passado tantos anos, mais de trinta e sete anos nunca me esqueci daqueles belos tempos que se foram. Devia ter tirado uma foto de Ouro Negro. Não tirei. Foram anos e anos de amizade, mas nunca fiz dele meu cavalo da lida. Ele era um rei e como tal devia ser considerado. Li uma vez que o verdadeiro paraíso terrestre reside sobre o dorso de um bom cavalo. Dizem que seus relinchos levarão a fé, ressoando nos ouvidos dos infiéis e enchendo de medo seus corações. Aprendi que quem cuida bem de seu cavalo terá sempre uma fonte de perpétua felicidade.