EM ALGUM LUGAR DO PASSADO

EM ALGUM LUGAR DO PASSADO
Celia, 49 anos de felicidade. Não sei viver sem ela

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Um adeus ao Odair.



Um adeus ao Odair.

             A vida às vezes nos reserva surpresas e experiências que não deixam saudades, mas que nunca esquecemos. Ainda solteiro e trabalhando na Usiminas em Ipatinga MG, eu o Carlos e o Odair dividiam um alojamento próximo ao Carirú. Nada há ver com o bairro, pois era destinada a nata da liderança da usina. Nós três morávamos em um alojamento de madeira, infestado de percevejos e pela manhã ou durante o dia quando acordávamos o corpo estava todo mordido. Uma situação insustentável. Como participávamos do escotismo, e como já estava em andamento o plano de organizar um grupo Escoteiro em Melo Viana resolvemos morar lá e vir trabalhar no transporte da usina. Nada mais nada menos que um caminhão lonado com mais de cem homens transportados por turno. Melo Viana era um distrito da cidade de Coronel Fabriciano.

            Alugamos uma casinha de dois quartos e sala que servia de cozinha. Ali instalamos a nossa republica. Nossas refeições eram feitas na pensão da dona Aurora. Em um domingo, o Odair estava de folga de oitenta horas. Eu tinha trabalhado de meia noite as oito e o Carlos ia pegar às quatro da tarde. Era assim nossa vida. Dificilmente estávamos juntos os três. O Odair convidou amigos e estavam “batendo uma pelada” em frente à casa. Entrei no jogo e o Carlos também. Com quinze minutos de jogo o Odair tomou uma bolada no peito e caiu de maduro. Corremos para ele que soltava golfadas de sangue pela boca. Era uma época diferente. Não tinha carros assim para transporte facilmente. Conseguimos uma hora depois um taxi, que nos comprometemos pagar no pagamento e levar o Odair ao Hospital Marcio Cunha em Ipatinga. Um hospital que pertencia a Usiminas.

              Odair chegou morto ao hospital. Soubemos que tinha uma tuberculose avançada. A bolada produziu uma hemorragia. Quase não saiamos de sua vida. Na Usiminas ele não tinha amigos. Morava em Muriaé. Naquela época uma viagem de estradinhas de terra até lá. Eu e o Carlos estávamos muito abalados com a morte dele. Éramos os únicos amigos que ele tinha. Era nossa obrigação leva-lo ate sua família em Muriaé. Onde morava lá teríamos que descobrir. Não foi fácil. Uma siderúrgica que ainda não se preocupava com seus funcionários e mesmo tendo um departamento com varias assistentes sociais custamos a conseguir um veículo para levá-lo. No necrotério do hospital nos deram dicas para tentar conservar seu corpo antes que entrasse em estado de decomposição. Sabíamos que após um dia o cheiro aumentava e a pele sofria as primeiras decomposições.

              Para dizer à verdade o que vivemos nesta viagem poderia ser considerado um filme de terror. De arrepiar os cabelos de qualquer defunto. Depois que a gente passa desta para melhor, nosso corpo perde suas defesas e começa a ser atacado por todos os lados: bactérias, animais e até substâncias produzidas por nós mesmos dão início ao fim. O cadáver vai ficando escuro e inchado, a pele e os órgãos se desfazem e o cérebro vira um caldo. Depois de algum tempo, não sobra quase nada. Quase doze horas de viagem. Levamos três litros de formol. A cada uma hora em todos os orifícios dele empapávamos algodão com formol e colocávamos.   

              Eu rezava para chegar logo. Era um jipe o que a usina nos cedeu. Ainda bem que um motorista educado e prestativo. Nem eu nem o Carlos tinha dinheiro nos bolsos. O Zé Motorista pagou um café reforçado em um posto de gasolina que parecia abandonado. Chegamos a Muriaé pela manhã. Interessante que quase toda a cidade já sabia do acontecido ao Odair. Filho da terra sua família humilde era bem quista. Fácil encontrar a casa dele. A família desesperada. A gente sem saber como agir. Não tínhamos nenhuma experiência. Não ficamos para o enterro. Zé Motorista tinha de cumprir uma escala e nós também. Sabíamos que a usina não abonaria nossas fastas.

              A viagem de volta foi uma viagem do silêncio. Eu pensando no acontecido. Pensando no Odair. Pensando como a morte acontece de repente sem ninguém esperar. Demorou meses para voltar ao normal. A casa parecia assombrada. À noite praticamente a luz de lampião, pois a elétrica mal acendia uma lâmpada, nos assustávamos em cada canto. Até hoje eu me lembro do Odair. Sua fisionomia foi desaparecendo com os anos. Amigos de meses. Ficamos juntos acredito que por nove ou dez meses. A morte é difícil de ser compreendida. Eu um espírita me assusto com ela até hoje. Meus amigos foram partindo e eu ficando. Lá se foi o Carlos. Ainda novo em uma batida de seu automóvel em Juiz de Fora. E cada um foi indo. O Lucio, Dona Lucia, o Dutra e tantos outros partiram. Eu fui ficando.

              Nosso passado não nos serve só como lembrança. Ele tem também a esperança do aprendizado. A vida é um eterno aprendizado. Temos livre arbítrio para decidir nosso destino, mas ele foi traçado antes. Se no caminho certo ou não teremos que voltar e refazer o caminho. Meu dia vai chegar. Não corro para isto. Quando chegar tudo bem. Para isto acredito em Deus. Acredito numa força maior que vai me dizer se minha trilha foi a que eu e alguns lá de cima tinham programado. Se não, não vou gritar exasperar nada disto. Vou aceitar. Sempre dito para mim mesmo – O que tem de ser será...