Saudade não tem idade.
De vez em quando
me olho no espelho e me pergunto: Quem é você? Risos. Pergunto-me porque morei
em tantos lugares, pois deste pequeno até hoje morei por boa parte do Brasil. Fazendo
um dia destes uma contagem me perdi nas setenta e quatro. Isto mesmo. A cada
mudança uma maneira de ver o mundo, um sorriso aqui e ali, e não se iludam.
Tinha e ainda tenho uma cara amarrada e feia. Se estiver naqueles dias cuidado
ao se aproximar de mim. Setenta e quatro mudanças, mas acho que ouve muito
mais. Ai eu começo a lembrar dos tempos de cada uma destas e como se fosse um
filme elas vão passando pela minha mente.
Vamos ver se
consigo lembrar-se de fatos interessantes. Ops! Aqui está um. Dezessete anos.
Sem dinheiro e duro. Trabalhando com meu pai, mas naquele galinheiro não tinha
ovos com fartura. Tinha um primo. Cesamar. Seis meses mais "Velho".
Conseguiu um emprego em uma empreiteira destas que tinham um bloco para
asfaltar a Rio Bahia. “Bitelô” (como me chamava) se quiser consigo alguma coisa
para você lá. Tire a profissional. Quando estiver com ela vai comigo até o
trecho de obras. Não me lembro do nome da Companhia. Acho sem ter muita certeza
que era a Techint Engenharia e Construção.
Não foi difícil.
Cheguei de manhã e a tarde estava empregado. Meu primeiro emprego de carteira
assinada. Estava orgulhoso. Colocaram-me no Setor do Pessoal. Mas e mal
escrevia a maquina. Mas dava para o gasto. O Chefe me disse que eu iria
trabalhar no campo. Como apontador de horas. Era um trabalho simples. Durante
um dia fiquei com ele na sede da empresa. No terceiro dia entrei em um caminhão
caçamba e junto a diversos peões lá fui eu para o trecho. Orgulhoso. Primeiro
emprego, dando sorrisos para a “piãozada” e pensei comigo. Breve seremos todos
amigos.
Quarto dia,
muitos de cara amarrada comigo. – Porque motivo pensava. Estávamos próximos a
Alpercata. Um poeirão dos diabos. Meu trabalho era simples. Verificar em um
trecho de cinco quilômetros quem estava trabalhando, quem chegava atrasado ou
quem tinha faltado. Não sabia, mas quase ninguém aceitava aquela função. Meu
primo também não sabia. Dos anteriores dois foram esfaqueados, um morto e
muitos que fugiram para nunca mais voltar. Por quê? Simples, era no salário
deles que a gente estava mexendo. Você corta um dia, corta um atraso e o final
do mês já sabe.
Guachura era um
moreno forte. Conversava muito comigo. Um dia menos de oito dias trabalhando
ele me procurou. Bitelô, melhor se mandar. Neco e outros pretendem brincar de
faquinhas em seu corpo. Juram que perderam muito dinheiro desde que você
chegou. Tremi. Um medo enorme. Já sabia o que estava acontecendo. Contaram-me
no alojamento das Três Marias. Falei com Cesamar ele era igual a mim. Um medo
de morrer enorme. Falei com o Chefe do Pessoal. Ele riu e só disse – Calma, mas
tenha cuidado. E todos lá na sala deram belas risadas.
Cheguei
atrasado ao trecho. Nem bem desci da caminhonete e eis que Guachura e mais
cinco se aproximaram. Guachura levava nas mãos uma enorme faca, faca? Que isso,
era uma enorme peixeira. Joguei a prancheta neles e aprontei uma correria
infernal. Duvidava que me pegassem. Era bom corredor. Corri mais de cinco
quilômetros e para descansar entrei na mata e lá fiquei até escurecer. Sai e
meia hora depois cheguei em Alpercata. Peguei um ônibus para minha cidade.
Medroso? Sou sim. Morrer para que? De morte morrida vá lá mas de morte matada
não é mole.
Cesamar uma
semana depois trouxe meu dinheiro, minha mala e minha carteira já dado baixa.
Carteira Profissional nova, dez dias e já dado baixa pode? Para mim sim. Ficar
lá e ser estrepado por um punhal é que não ia dar. A vida vale muito para ser
jogada pela janela. Mas não foi só essa vez que por um triz não me estrepei.
Acho que Deus me ajudou e muito. Voces já sabem que fui um gerente de uma
enorme fazenda. Coisa boa. O melhor emprego que já tive. Pena que só durou seis
anos. Mas valeu.
Estava no
escritório. Um enorme galpão. Enorme meio. Para ter ideia eram quatro divisões de
mais ou menos cento quarenta metros quadrados. Uma eu fazia de escritório e
almoxarifado. Outra estoca milho. E olhe, vinte caminhões não dava para
carregar ele todo. Minha casa ficava a uns cem metros dentro de um pequeno
bosque. Manuel um dos vaqueiros veio correndo a cavalo. – Seu Osvaldo, um
caminhão vindo da fazendo do senhor Manezinho está roubando muitos mourões pelo
trecho que passam. Aqui vi eles pegarem um dez. algumas cercas foram derrubadas.
E agora? Tinha
fama de mau. Mau? Risos. Só fama. Tinha comprado um revolver do senhor Jacinto,
um fazendeiro vizinho. Nunca tive uma arma. Nunca pensei em ter. Mas pensei
comigo, mesmo que nunca houve nenhum roubo, nenhum crime aqui, estava com minha
família e na sede não tem mais ninguém. As casas dos empregados ficavam longe.
Mais de dois quilômetros. Divirto-me lembrar que comprei uma caixa de balas.
Fui até a Larguinha, em uma elevação, coloquei duas latas de um litro de óleo
vazias tomei distancia (mais ou menos dez metros). Esqueci de dizer, era um
Colt calibre 38. Fui bom no fuzil quando estava no exercito mas fora isto nunca
usei uma arma. Gastei uma dez balas e nenhuma acertou nas latas. Voltei para
casa e guardei a arma no Escritório.
Tinha que
interceptar o caminhão. Não havia outro jeito. Que Deus me ajude. Peguei a arma
e nem olhei se estava carregada. Pensei em chamar uns dois vaqueiros ou quem
sabe os tratoristas. Não tinha ninguém na hora. Não dava tempo. Ou corria lá
agora ou eles iriam levar todo produto do roubo. Peguei a C-10 cortei caminho
pelo tanque d’água. Trecho ruim mas os pegaria na curva da onça. Entrei na
estrada principal, pertencente à fazenda e logo vi o caminhão vindo em minha
direção. Parei no meio da estrada. Não dava para eles passarem. Desci da
caminhonete com a arma na cintura.
Que merda! Mais
de seis homens na carroceria e três na boleia. E agora José? Não tinha jeito.
Pedi ao motorista para descer. Ele não disse nada. Os demais da boleia também desceram.
Da carroceria ficaram todos. – Joguem todos os mourões que voces pegaram aqui.
Agora e já! Só Deus sabia como eu estava. Olharam uns para os outros. Firmei
uma mão na coronha do revolver. O motorista mandou jogar. Não eram dez, tinha
mais de vinte! – Vou tirar meu carro e voces podem ir. Nunca mais poderão usar
esta estrada. Se precisarem vão a pé até a sede e peçam.
Entrei no
carro morrendo de medo. Encostei e eles passaram. Fui atrás até que passaram
pela porteira de entrada. Meu coração estava em disparada. Voltei à sede.
Manezinho estava lá. – Seu Osvaldo, o senhor foi macho mesmo! Olhei para ele. –
Eu estava lá. Fui a minha casa e peguei meu 32. Eles não me viram ou se viram
obedeceram mais rápido. E começou a dar risadas que só ele sabia dar. Celia e
os meninos não souberam ao que estava havendo. À noite contei. Ela ficou
preocupada. - E agora marido? Eles podem te pegar em Pirapora. – Seja o que Deus
quiser. Amanhã mesmo procuro o Delegado Fontoura. Ele saberá o que fazer. O
Delegado era amigo. Um dos poucos que deixava pescar na fazenda e não escondia
que a comida da Célia era uma das melhores. Sempre jantava conosco.
Bem não houve
nada mais através dos tempos. Fiquei lá por mais alguns anos e parti. Minha
vida de andarilho. Uma proposta aqui outra ali lá ia eu embora. Arranchei-me em
São Paulo. Tem tempo. Quanto tempo mais? Agora até o fim da vida. Não dá mais
para aceitar desafios. São coisas da vida. Vida? Bem a minha foi assim. Um dia
aqui outro ali e vivi feliz em todos estes anos. Dizem que saudade não tem
idade e eu acredito. Não tem mesmo. Quem vive muito tem muitas lembranças. Quem
vive pouco não vai lembrar de nada. E que assim seja!
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