Ele era o meu
pai
Não tivemos um
relacionamento muito próximo. Talvez pela época, onde o respeito e a palavra
senhor fazia parte do nosso vocabulário. Pequenos momentos talvez. Ele me
contou diversos fatos de sua vida. Não muitos porque se fosse hoje eu queria
saber muito mais. Não foi um pai diferente dos outros e nem tampouco
excepcional. Mas para mim foi aquele que admirei e admiro até hoje.
Quando pequeno, não sabia
o que se passava não me preocupava com o dia, a semana, o ano. Ia à escola e
depois era só brincar. Na minha casa morava eu, minhas duas irmãs, minha mãe.
Achava que éramos uma família feliz apesar de pobre. De uma pequena cidade só lembro-me
de uma casinha branca, próximo ao cemitério. Por dentro não me lembro de nada. De
outra cidade, lembro-me da casa, de madeira, fundos para o rio e embaixo em um
porão com piso de terra, alguns pobres aproveitavam a seca do rio para ali
morarem. Quando chovia o rio invadia tudo. Também éramos muito pobres, pois em
volta de uma pequena mesa, sentávamos em caixotes para as refeições.
Graças a Deus que nunca
passamos fome. Dificuldades sim. Elas existiam e eu pequeno não tomava
conhecimento. O café da manhã, o almoço e o jantar sempre existiram. Meu pai
nesta época era Seleiro, aquele que fazia selas para cavalos e outros
apetrechos afins. Eu pequeno, 06 para 07
anos não ajudava a não ser aos sábados e domingo. Nestes dias ajudava a
engraxar os sapatos de vários clientes do meu pai. Tornei-me um excelente
engraxate. Lembro-me do Grupo Escolar, do colégio, mas não me lembro de meu pai
em momento algum me chamando a atenção ou brigando comigo. Era calmo e ponderado.
Nunca em tempo algum me encostou a mão e por muito poucas vezes falou mais
alto.
Sei que as manas e ele com
muito sacrifício compraram um terreno e construíram um barracão em um bairro na
periferia da cidade. Nele tinha o meu quarto próprio. Eu gostava de morar ali.
Apesar de não ter ainda água encanada da rua, havia uma cisterna com uma bomba
manual. Todos que tomavam banho teriam que usar a bomba por mais de 100 vezes.
Assim, mantínhamos a caixa cheia e o serviço feito por todos. Meu pai alugou um
salão próximo ao centro. Ali montou uma oficina de rádio. Tinha estudado por
correspondência e já era um perito no assunto. Achava que meu pai era muito
inteligente. Tentei fazer o mesmo curso, mas não deu certo. Talvez porque não
era bom aluno ou quem sabe não era o que queria fazer. Após as aulas ia trabalhar
com ele e ver se aprendia alguma coisa na prática.
Ele me deixava ficar com a
quantia dos serviços que realizava. Muito poucos por sinal, mas dava para ir ao
um cinema, acampar e namorar. Nesta época já trocávamos idéias e ele com sua
sapiência me mostrava algumas diretrizes da vida. Conversamos pouco. Foi ali
que alguns fatos de sua vida me foram relatados, com parcimônia é claro. Uma de
quando moramos em uma fazenda de um tio meu, eu ainda com três para quatro
anos, (não me lembro de nada a não ser da casa, pois posteriormente passei
algumas férias lá) e o que ele fazia nunca soube.
Uma vez comentou comigo
sobre a revolução de 32 (constitucionalista). Ele jovem ainda se alistou. No
inicio tudo era festa para ele e seu amigo um tal de Sebastião Barrigada.
Andaram por aqui, por ali, até que foram levados de caminhão a uma pequena
cidade já dentro do território paulista. No primeiro confronto, foi só
correria. Os paulistas inventaram uma matraca que imitava perfeitamente o
pipocar de uma metralhadora ponto 30. Quando começou o barulho foi um Deus nos
acuda. Depois virou rotina, ninguém mais tinha medo, pois já sabiam o que era. Estavam
em uma tarde em uma trincheira, deitados e o matraquear das metralhadoras
pipocavam ali e lá. Seu amigo ficou em pé e começou a chingar os paulistas e
rindo dizendo que com a mineirada eles não eram de nada. Meu pai gritou para o
Bastião deitar. Ele não obedeceu. Achava que era mais uma piada dos paulistas. Em
dado momento o Bastião deitou de vez. Meu pai disse para ele, você deita ou não
deita? E olhando viu que ele tinha um grande buraco na testa e do outro lado
pedaços de seu miolo jaziam por todo o lado. Foi de estarrecer ele disse.
Não contou mais de sua
luta, da sua militância política da revolução enfim de muitas outras coisas que
eu gostaria de saber. Sabia que ele
gostava do partido da UDN e odiava o PSD. Porque não sei. O tempo passou. Ele
ficou doente, quase morreu. Minhas irmãs o levaram para a capital. Lá achavam
que ele teria melhores chances. Depois ficamos sabendo que era diabete. Pouco
conhecida na época. Muitos anos depois, morando na mesma cidade, aos domingos
me dirigia a casa dele, passava lá o dia inteiro, mas conversávamos pouco. Acho
que não havia assuntos, mas quanta coisa poderia ter sabido se tivesse
perguntado.
Sua vida foi sem sobressaltos.
Doente, andava aqui e ali fazendo pequenas caminhadas. O que sentia não
perguntei. Devia ter perguntado. Ele nada dizia. Morreu em uma semana qualquer
há muitos e muitos anos. Fui ao enterro e chorei. Pensava no meu pai e o quanto
poderíamos ter conversado. Hoje, espírita que sou acho que ele não deve ter
tido dificuldades para alcançar um lugar melhor para ficar. Senti e sinto falta
do meu pai. Hoje com quatro filhos e muitos netos, me pergunto por que não
ficamos mais próximos. Ele era assim e eu também. Ainda sou meio taciturno com
os meus filhos. Herança? Não sei. Quero me aproximar e não consigo. O mundo é
assim. O livre arbítrio nos faz escolher caminhos que nem sempre são aqueles
que deviam ser escolhidos. Faz parte do nosso crescimento.
Um dia vou me encontrar
com ele. As perguntas que não fiz a farei. Se as respostas forem a que espero
ótimo se não forem paciência. Este era o meu pai. Um homem calado, bondoso,
amigo que me deixou fazer o que queria. Nunca em tempo algum me fez qualquer
admoestação. Que ele seja feliz onde quer que esteja e que na sua próxima
encarnação encontre de novo a felicidade que merece.