É doce morrer no mar!
Você já viu a morte de perto?
Não sei por
que, mas muitos que conheço têm medo de falar em morte. Mesmo sabendo que um
dia isto pode acontecer com ele nada feito. Ele se recusa, muda de assunto e
quanto mais rápido esquecer melhor. Bem eu não sou assim. Mórbido? Não. Nada
disto. É uma realidade e não temos como fugir. Mas porque estou comentando
isto? Bem hoje me lembrei de vários fatos que me levaram bem perto da morte.
Não aconteceu, mas poderia ter acontecido. Dizem que a hora quando chega não
tem como fugir, portanto não era a minha hora. Quantos de vocês já viram a
morte de perto? Contar até três e dizer – Estou morto! Tchau mundo parto
reclamando, pois queria viver mais. Risos. Claro que quando isto acontece não
dá para falar. Comigo foram vários fatos. Fatos que julguei depois do
acontecido ter me salvado de boa. Vamos aos fatos. Tentando rememorar desde
minha infância.
1955 ou
1956? Não lembro bem. Eu e dois sêniores. Metidos a aventureiros. Agora resolvemos
escalar uma pedra próxima a nossa cidade. Pedra alta, dizem que tinha mais de
quatrocentos metros, acho que não. Máximo de trezentos. Sem nenhuma
experiência, uma corda de oito metros lanches para um dia, um cantil cheio e lá
fomos nós. Fácil no inicio. Experiência de alpinismo? Nenhuma! Nada de técnica,
nada de materiais próprios para escalada. Não digo que a coragem valia. Ali era
mais uma maneira de provocar acidentes e até fatais. Cem metros, cento e cinquenta,
duzentos. Um vão de um metro por três. Uma vista espetacular. Três seniores
rindo a valer de sua coragem. Eles eram os primeiros a escalar a pedra. Às três
da tarde inicio da descida. Impossível. Um medo medonho. Tentamos sair pela
lateral. Para cima não dava. A pedra era negativa. Positiva sim negativa não.
Quatro e meia, um sol queimando. Lá em baixo um rio lindo serpenteando a
cidade. Andamos vinte metros escorreguei. Cai na pedra lisa. Seria mais de
duzentos metros queda. A corda amarrada se prendeu em uma saliência e me
segurou. Fiquei balançando no ar. Olhei para baixo chorando. Escapei. Outra
escalada? Nunca mais. Esta foi a primeira e última.
1959 ou 1960?
Meu primeiro emprego. Recém-saído do exército. Techint Engenharia. Asfaltando a
Rio Bahia. Trecho de cento e cinquenta quilômetros. Função de Apontador de
Horas. Fácil. Uma prancheta, caneta, marcar hora de chegada e saída de 80
homens. Se o Encarregado autorizasse ficar lá depois do horário para ver horas
extras. Tudo no trecho. Máquinas correndo e zigzagueando. Serviço maneiro.
Fácil. Gostoso. Um mês. Primeiro pagamento. Sorrisos nos lábios. Uns dez homens
me procurando. - Cadê minhas horas? Que horas? Não marcou minhas extras? Filho
da puta. Ou me paga ou te mato! Deitei a correr estrada abaixo. Atrás de mim
uns cinco de facão e punhal. Nem deu tempo de rezar. Cheguei a Alpercata um
arraial e me escondi em um bar. Eles lá fora. Sai filho de uma égua. Ou me paga
ou morre. A polícia veio. Peguei o ônibus para minha cidade. Duas calças três
camisas, duas cuecas e um chinelo ficaram lá. Nem para receber meu mês trabalhado
eu retornei.
1961 ou 1962?
Desempregado. Aceitando tudo que aparecesse. Um anuncio no jornal. Lá fui eu.
Vender livros. Eu? Nunca vendi nada. Quinze dias fazendo um cursinho. Se
vendesse uma coleção já dava para passar um mês. Enciclopédia Larousse e
Britânica. Ambas famosíssimas na época. Uma equipe de quatro. Percorrer várias
cidades de minas e Espírito Santo. Terceira cidade. Tinha vendido uma e mais
nada. Quieto no meu canto jantando na pensão. Os três amigos vendedores sentam
ao meu lado calados. Comida gostosa. A cozinheira era excelente. As mesas em
volta começam a encher de gente. Um zum, zum corre o refeitório. Olhei para ver
o que era. Três homens armados. Um com escopeta e os outros dois com
revolveres. Puta merda! Alguém vai morrer. Eles param na nossa mesa. – Quem é o
Nonato? Nonato era o encarregado nosso. Mais antigo bom vendedor, vendia que
nem água. Nonato ficou branco. Lívido. Gaguejou e saiu correndo. Nós atrás
dele. Um tiroteio dos infernos. Consegui me esconder atrás de um muro cheio de
capim colonião. Fiquei ali por horas. Voltei pé ante pé na pensão. Seu Armando
proprietário já tinha separado nossas malas. – Sumam daqui e não voltem nunca
mais! Estão jurados de morte! Andei a pé por dezoito quilômetros até Nova Era
onde peguei o trem de volta para minha cidade. Mais tarde fui saber que o Filho
da mãe do Nonato foi vender um livro e acabou por dormir com a mulher do cara.
A cidade em peso sabendo. Vingança da honra não? Isto faz parte do folclore
mineiro.
1963 ou
1965? Usiminas. Auxiliar técnico de alto forno. Morava em uma casinha da
siderúrgica em Candangolândia. Um bairro próximo. Minha bicicleta resolvia
tudo. Trabalho de turno. Naquele dia inicio as oito da matina. Portaria IV. Eu
montado parei. Milhares de peões aglomerados na entrada. - O que houve? –
Revolta geral contra os vigilantes disseram. Mataram um dos nossos a noite. Eu
sabia que os vigilantes não eram flor que se cheire. Contava-se na Radio Pião
que eles tinham porões da morte. Pegavam um pião e acabavam com ele. Radio Pião
ou você acredita ou não. Meia hora depois chega um caminhão. Um Velho Ford. Na
carroceria uns quinze soltados. Em pé num tripé uma metralhadora ponto trinta.
Enorme. Já era minha conhecida de exército. Um perigo na mão de um bom
atirador. Peãozada atira pedras nos policiais. Eles abrem fogo. Nego correndo
feito quati na mata. Eu larguei minha bicicleta e me escondi atrás de uma
engradado de maquinário. Nunca vi tanto tiro. Gente gritando e berrando. Outros
pedindo socorro. O tiroteio parou. A soldadesca se mandou. Minha bicicleta
sumiu. Corri a pé para casa. Dia seguinte disseram que morreram mais de cem.
Siderúrgica publicou que foram oito. E os feridos? Desta eu escapei.
1966 ou 1967? Porto do Tubarão – Vitória.
Precisava trabalhar. Perdi o emprego na Usiminas. Um filho e mulher para
sustentar. Contaram-me que um grande complexo siderúrgico ia ser construído
próximo ao porto do Tubarão em Vitória. Minha sogra morava lá. Um trem, quinze
horas de viagem e cheguei. Onde era? Ensinaram-me que devia pegar qualquer
caminhão lotado de pião que passasse entre cinco e meia e seis e meia da manhã.
Ninguém ia saber que não era fichado. Assim fiz. Uma hora de viagem. A praia
linda. Ainda virgem e com mato por todos os lados. Hoje arranha céus enormes.
Um susto! Mais de três mil homens querendo trabalhar na porteira da entrada. O
que fazer? Empurra e empurra cheguei próximo à porteira. Dois vigilantes mal
encarados com cassetete na mão. Tentei falar me deram uma cacetada. Voltei. E
agora? Escoteiro não se aperta. Precisava entrar. Sem falar com o Serviço de
pessoal não ia conseguir nada. Subi o morro uns mil metros. Lá no alto
atravessei a cerca. Andei uns quatrocentos metros e avistei o acampamento da
empreiteira. Bem próximo à praia. Sorri. Não era bobo pensei. Comecei a descer
e levei a primeira lambada. Uma duas e perdi a conta e os sentidos. Como
apanhei. Acharam que estava morto. Todo ensanguentado. Estavam me arrastando
atrás da cerca. Um encarregado de manutenção viu. Chamou um gerente que chamou
uma diretora. Levaram-me para o ambulatório. Um carro me levou para casa com
ordens de me pegar dois dias depois e levar até ela. Arrumei o emprego!
1976 ou 1977?
Fazenda São Vicente – Gerente da fazenda. Deixei o bigode crescer mais. Bigode
dizem é sinal de autoridade. Aprendi a criar calo na bunda para andar a cavalo.
Não pensem mal de mim. Sarduá me apareceu nem sei de onde. Tinha história para
contar. Vaqueiro dos bons. Precisava. Admitido com carteira assinada. Bom
homem, mas bebia demais. Um dia Manezinho me contou a história dele. Mais de
cinco mortes nas costas. Sempre fugindo da Captura. Não parava em lugar nenhum.
Eu devia tomar cuidado. Toninho Tratorista chegou correndo no escritório – Seu
Osvardo tem um caminhão na estrada da larguinha roubando os mourões da cerca
que o senhor vai fazer. Mourões de peroba. Caros. Difícil de conseguir, mas
duravam uma eternidade. Meu cavalo arriado e no galope ainda peguei o caminhão
parado enchendo a carroceria. Putz! Meu trinta e oito não levei. Estava na
gaveta da escrivania. Mesmo assim mandei todo mundo descer. Tem cinco minutos
para descarregar tudo gritei! Eles riram a valer. - Quem vai ser o homem que
vai nos obrigar? Sarduá saiu detrás de uma moita de pequi. Uma merda de uma
garruchinha de dois tiros na mão. Um tiro na janela do caminhão. Todos
assustaram. – Cumpri as orde do seu Osvardo. Ainda tenho um tiro. Vai nos zoios
do filho da puta que ficar parado. Descarregam. Foram embora. – Seu Osvardo,
não andi desarmado. Vai levar um dia um tiro na bunda!
1978 ou 1979 –
São Paulo – Vila Leopoldina próximo ao Ceasa. Trabalhando na Mannesmann
Comercial. Chefe de Depósito de Materiais. Quinhentos metros do viaduto
Mofarrej. Hoje local de Shopping e grandes lojas. Antes um punhado de galpões
caindo aos pedaços próximo a uma favela. A chuva começa a cair. Ninguém dá
bola. A chuva não para. Cai com grande intensidade. Os depósitos (eram três)
ficavam quase dois metros acima do nível da rua. A enchente começou. Comum
naquela época. Não sabia deste pormenor. Avisaram-me que devíamos subir tudo em
cima das mesas e sair. Liguei para a Diretoria. - Abandonem o barco me
disseram. Deve ficar pelo menos três tomando conta. Convidei os três.
Aceitaram. Hora extra não se joga fora. Fiquei com eles até às seis da tarde.
Todos os demais funcionários já haviam saído com água no joelho. Minha vez.
Quando cheguei à rua não dava pé. Tudo bem. Nadava bem. Mas ali não dava. A
correnteza me arrastava em direção ao Tietê. Estava de roupa e blusa de frio.
Pesou. Tirei a blusa os sapatos e a calça. Continuava a ser arrastado. Vi uma
pequena árvore. Passei por ela e me agarrei. Não dava para subir. Não tinha
galhos altos. Segurei como se segura a própria vida. Morrer afogado em plena
São Paulo? Lá pela meia noite a água desceu. Voltei ao asfalto. Ninguém lá. Só
meus filhos preocupados. Culpar a empresa? Não acho que ela não sabia. Mas
acredite, nesta eu vi a morte de perto.
Muitas outras,
várias. Mas fica para outro dia. Lembranças. Quem não as tem?